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Livros LGBTQIA+

Russo 'Asas' foi livro pioneiro dos romances de teor homoerótico

Livro de Mikhail Kuzmin foi um sucesso de público e crítica mesmo em 1906, entendido como um manifesto pelo amor livre

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Stefania Chiarelli

Professora e pesquisadora de literatura brasileira na Universidade Federal Fluminense

Asas

  • Preço R$ 110,90 (200 págs.); R$ 67,90 (ebook)
  • Autoria Mikhail Kuzmin
  • Editora Carambaia
  • Tradução Francisco de Araújo

Mikhail Kuzmin foi um expoente no círculo boêmio e intelectual da São Petersburgo do início do século passado. Figura de destaque no modernismo russo, escreveu prosa, poesia e diários.

Referências autobiográficas surgem a cada tanto em sua obra, como em "Asas", publicado em 1906. Apresentado em um elegante volume na tradução de Francisco de Araújo, o romance volta a circular entre o público brasileiro, já apresentado ao escritor 20 anos atrás.

Desenho do artista americano Paul Cadmus
Desenho do artista americano Paul Cadmus - Divulgação

Kuzmin propõe um tratamento pioneiro da temática homoerótica no livro, considerado por muitos o primeiro romance gay na literatura ocidental do século 20 (apesar da publicação do apimentado "Bom Crioulo", de Adolfo Caminha, poucos anos antes).

Quando surgiu, "Asas" obteve sucesso de público e crítica e foi entendido como uma espécie de manifesto pelo amor livre, já que a Rússia passava por relativa receptividade ao tema. Na Europa, na mesma época circulavam os escritos de Oscar Wilde, julgado e condenado em 1895 por "indecência grave".

O interdito e o não nomeado são elementos estruturantes do romance. Muito além de um panfleto sobre o amor entre homens, são tematizados o desejo e o temor de um jovem diante da descoberta da atração por corpos semelhantes ao seu: noções como o pecado, a natureza das relações, a beleza e a fé surgem no texto como parte dessa caminhada na descoberta de si.

No entanto, "Asas" revela uma "atitude tranquila e positiva" dos personagens diante da homossexualidade, à semelhança do próprio Kuzmin, como observa no posfácio o crítico Ivan Sokolov.

Dividida em três partes, a narrativa acompanha a trajetória de Ivan Smúrov, ou Vânia, órfão que sai do interior e passa a viver com uma família da alta classe de São Petersburgo, onde começa a estudar arte e história. Seu principal desconforto decorre da convivência com Stroop, homem refinado que vive sua homossexualidade de modo livre.

"Os amores de Stroop são outra coisa, uma coisa completamente diferente", provoca um personagem sobre a nebulosa vida afetiva do aristocrata inglês.

Concebido com apuro estilístico, o romance se organiza em uma sucessão de cenas, muitas delas trazendo diálogos afiados, o que cria intenso efeito de teatralidade e agilidade na leitura. Os personagens debatem, trocam pontos de vista; a ação é sobretudo mental.

Nota-se também a habilidade narrativa de Kuzmin ao convocar diversas sensações, construindo cenários em que proliferam sons musicais, barulhos de conversas, aromas de charutos, morangos e vinho; aliados à percepção de variados tons de luz e cores. Uma festa para os sentidos.

Talvez sejam eles os protagonistas desta pequena obra-prima, em que a carne e a pele gritam algo que ainda está além do entendimento racional do jovem Vânia, na forma de impulsos não compreendidos. Mas Eros quer bater asas e voar.

Daí a força imagética do título, retomado ao longo da narrativa, de final aberto, condizente com um romance que privilegia a sugestão. A aventura da vida começa quando termina o livro: "Somos helenos, amantes do belo, bacantes da vida futura".

O futuro traria incertezas ao escritor: "Asas" foi suprimido pela censura soviética durante décadas. Do ponto de vista da recepção, continua em terreno instável, já que na Rússia de Vladimir Putin o governo aprova leis criminalizando qualquer tipo de manifestação homoafetiva em espaço público, além de elaborar listas de livros proibidos.

Nesse sentido, é mais do que bem-vinda a leitura do romance, que traduz em experiência estética o reconhecimento de múltiplas formas de erotismo e sensibilidade.

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