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Em mesa pop e feminista, Flip debate até 'arquitetura fálica' da avenida Paulista

Encontro no segundo dia do evento literário em Paraty reuniu Joice Berth, Manuela d'Ávila e Denise Carrascosa

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Paraty

Indo do olhar sexualizado de Jorge Amado para corpos negros femininos à "arquitetura fálica" da avenida Paulista, uma mesa com quatro mulheres foi até aqui um dos momentos mais pop da Flip.

Da esquerda para a direita, Joice Berth, Manuela d’Ávila, Denise Carrascosa e Adriana Ferreira Silva
Da esquerda para a direita, Joice Berth, Manuela d'Ávila, Denise Carrascosa e Adriana Ferreira Silva em mesa na Flip - Walter Craveiro

O encontro aconteceu na manhã desta sexta-feira, com casa cheia para ouvir Joice Berth, urbanista, psicanalista e autora de "O Que É Empoderamento?", Denise Carrascosa, crítica literária que estuda o encarceramento no Brasil, e Manuela d’Ávila (PCdoB), torpedeada por misoginia na eleição de 2018, quando concorreu à vice-presidência na chapa encabeçada por Fernando Haddad (PT) e derrotada por Jair Bolsonaro (PL). Na mediação, a jornalista Adriana Ferreira Silva.

O tema proposto, "Uma Prisão Mortal", abria várias abas possíveis para um debate em torno do feminismo, sobretudo aquele puxado por mulheres negras, maioria ali —só d'Ávila era branca. Silva inicia a conversa perguntando quantos fantasmas as três convidadas exorcizaram para se tornarem escritoras.

Carrascosa diz que a prisão, mais do que uma metáfora para experiências de escrita, "é também uma instituição muito concreta". A tortura, afirma, "não é só resíduo da ditadura militar" e continua punindo corpos racializados.

E o discurso literário, aponta, nada tem de neutro. Também a literatura pode ser "racista e sexista", diz, para em seguida denunciar "a construção do imaginário em torno do corpo de mulheres negras da obra de Jorge Amado". A obra do baiano é farta em estereótipos sobre essa ideia "da mulata", uma mulher com alta voltagem sexual.

Berth se descreveu como uma criança com "muita dificuldade para socializar", que "não conseguia muito abrir minha boca", o que associa ao racismo que sentia desde menina. Uma janela se abriu quando uma tia lhe presenteou no Natal com uma agendinha daquelas com caneta e cadeado.

"Ser mulher é estar numa prisão mortal", diz. Mas com uma ressalva importante: mesmo esse cárcere pode trazer libertação, porque foram outras mulheres que a incentivaram a escrever.

"Ser um homem, branco, de padrão econômico elevado, o coloca muito próximo de liberdade plena", afirma a arquiteta. Isso se reflete numa arquitetura por vezes opressora.

Menciona, então, o que chama de arquitetura fálica. Um belo exemplo seria a avenida Paulista, centro comercial cheio de espigões que representam o poder econômico. Ali se enfileiram "prédios altamente masculinos", que passam o recado de que "o dinheiro importa".

Aí vem o Masp, projeto de Lina Bo Bardi, que não tinha uma militância feminista propriamente dita, mas propôs "um respiro num ambiente altamente sufocante", com um vão livre disputado por quem passa pela avenida.

A política do trio exalta uma plateia predominantemente feminina, sem citar que a maior parte dela era branca. Mas d'Ávila tem o cuidado de se introduzir na discussão como uma mulher privilegiada, pois de pele clara, com boa condição financeira e um companheiro que divide as responsabilidades no cuidado da filha do casal.

Nem partir dessa posição de mais conforto a livrou de ter sua capacidade intelectual sob persistente escrutínio, diz. Algo comum a tantas mulheres. Talvez por isso, quando jovem, d'Ávila não se reivindicasse feminista. A ex-deputada conta que se orgulhava de ter mais amigos homens, queria falar de economia de igual para igual, como se o assunto fosse terreno masculino por excelência.

Ela publicou em 2019 "Revolução Laura: Reflexões Sobre Maternidade e Resistência", sobre o impacto em sua vida provocado pela filha que teve em 2015, com um Brasil às vésperas de entrar no turbilhão político que se seguiu ao impeachment de Dilma Rousseff (PT) e culminou na vitória de Bolsonaro em 2018.

"Queriam que eu escrevesse sobre a violência de 2018, mas pensava ser injusto transformar em memórias tão profundas apenas uma dimensão do que eu tinha vivido." Se por um lado lhe atravessou "a dimensão do ódio", por outro, conheceu uma rede de afeto que se construiu em torno dela e da filha. Seu desafio, portanto, era "contar história bonita diante do horror".

Carrascosa é aplaudida ao propor uma autocrítica para um grupo majoritário ali. "Mesmo sob governos de esquerda —e nós, do campo progressista, precisamos enfrentar essa realidade—, mulheres sofrem tortura institucional, estupro institucional através das revistas vexatórias." Ela lembra do governo da Bahia, sob guarda do PT, que acumula crises de segurança pública e escalada na violência policial.

Lança o conceito de "feminegricídio" para falar da maior vulnerabilidade das mulheres. Mas a literatura, segundo a professora de literatura da Universidade Federal da Bahia, é uma ponte possível de salvação. Quando leem autores negros como Conceição Evaristo e Itamar Vieira Junior, presidiárias que há 13 anos encontra uma vez por semana se sentem incentivadas a produzir escritos próprios.

A mediadora resgata a notícia de que, pela primeira vez em sua história, a Fuvest, vestibular que seleciona alunos para a USP, terá uma lista de leitura obrigatória só com obras escritas por autoras. "Até que daqui a três anos incluem de novo Machado de Assis", brinca Silva. Por ora, a exclusividade feminina vale para as provas que serão aplicadas a quem quiser entrar na universidade em 2026, 2027 e 2028.

O quarteto terminou sua conversa aplaudido de pé.

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