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História do fetiche no Brasil é resgatada em livro de uma ex-dominatrix de 83 anos

Relançado como ebook, 'A Vênus de Cetim', escrito por Wilma Azevedo, reflete efervescência política e erótica dos anos 1980

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São Paulo

Quando Wilma Azevedo subiu ao palco do Dominatrix Augusta, que se define como "a melhor casa fetichista de São Paulo", não havia muita gente na plateia. Ela tirou o casaco, mostrando um vestido curto, nas cores preta e vermelha, e deixando claro, aos seus 83 anos, que nunca esqueceu o código básico da vestimenta da cena BDSM.

A sigla BDSM engloba práticas de bondage, ou imobilização, dominação e submissão e sadomasoquismo. E Wilma Azevedo, aquela mulher de cabelos loiros sentada no centro do palquinho, era simplesmente a autora do que é considerado o primeiro livro sadomasoquista brasileiro, lançado há quase 40 anos, "A Vênus de Cetim". Na época, nem se falava no "B" e no "D", ficávamos só no "SM", que resumia tudo.

Capa do livro 'A Vênus de Cetim', relançado depois de 40 anos
Capa do livro 'A Vênus de Cetim', relançado depois de 40 anos - Reprodução

"A Vênus de Cetim" foi fruto do sucesso da então jornalista que escrevia colunas picantes para revistas masculinas da época como Ele & Ela e Clube dos Homens.

O resgate do livro se deu por meio do projeto de mestrado da jornalista Fernanda Bonfim, que aborda a história do fetichismo no Brasil. Todos aqueles com que ela conversava lembravam Azevedo como a grande pioneira —mas seus livros, em especial esse primeiro em que narra como começou sua trajetória de dominadora, praticamente não eram encontrados.

Foi então atrás da autora, que havia dez anos, por causa de uma promessa que prefere não comentar, não queria saber de mais nada do meio BDSM. Conseguiu convencer Azevedo a relançar a obra, atualizando graficamente o livro e incluindo alguns trechos que a própria autora sugeriu. O projeto da nova edição, que é de Bonfim, em parceria com Ricardo Paschoalato, é do estúdio Devagar e "A Vênus de Cetim" voltou a circular como ebook.

O primeiro lançamento do livro, em 1986, viu tempos de efervescência política, com as Diretas Já agitando a sociedade, os exilados políticos da ditadura militar começavam a voltar, e o começo do Partido dos Trabalhadores. Eram também os anos libertários (e libertinos) pós-revolução sexual, aditivados pela pílula anticoncepcional, a tanguinha de crochê do Fernando Gabeira e os rebolados de Ney Matogrosso. Tempos em que, para transar com alguém, só eram necessários tesão e oportunidade.

O surgimento da Aids veio como uma violenta puxada de freio de mão na esbórnia. O mundo foi ficando mais careta e assustado. Achavam que o futuro seria um papai e mamãe penitente entre as quatro paredes da família de bem.

Só que, claro, a humanidade nunca conseguiu ficar muito tempo sem cumprir não apenas com a função básica animal de procriar, mas de realizar seus desejos e fantasias. E, entre as fantasias, o universo do fetiche e do BDSM é um dos mais poderosos vetores para sair à caça de parceiros.

Sem o Tinder, a caça de parceiros passava pelo envio de cartas a caixas postais alugadas pelos interessados e divulgadas nos anúncios classificados das revistas masculinas.

A coisa funcionava mais ou menos assim —uma carta era publicada na revista dizendo "Zezinho busca mulher dominadora de olhos verdes, que goste de bater com chinelos azuis em homem moreno e bem dotado, às quartas-feiras depois do almoço". "Interessadas podem mandar carta à caixa postal tal e tanto."

Daí, as ditas interessadas se candidatavam também por carta, que era recolhida periodicamente por Zezinho, que respondia àquelas que mais pareciam combinar com suas expectativas e esperava mais uma vez o retorno das selecionadas. O processo todo, para os jovens de hoje, acostumados ao contato imediato de tudo quanto é grau, soa exasperante. E era.

O contexto é relevante para entender o livro "A Vênus de Cetim". Porque é de caixas postais que se constroem os relatos nele contidos, que se seguem à história de sua própria infância e adolescência. Carta vai, foto vem, semanas, até meses separavam os contatos iniciais das vias de fato.

Mas Wilma Azevedo relata que, mesmo com todo esse delay da comunicação, chegou a ter 30 escravos a seus pés, aí incluído seu autodeclarado fã número um, o cartunista Henfil, notório podólatra que irritava a censura dos militares nas tirinhas publicadas pelo Pasquim.

É interessante observar que, para quem está acostumado a navegar pelos sites de pornografia sadomasoquista, os relatos quarentões de Azevedo podem parecer até ingênuos. O meio BDSM, hoje, gera tanto best-sellers edulcorados e até irresponsáveis como 50-tons-de-bobagem, quanto verdadeiros manuais do bom "bedessemista", cheios de regras de segurança e dicas de como obter prazer sem correr o risco de trombar com o Código Penal.

O livro sobreviveu ao tempo? Tanto quanto qualquer outro registro fiel de um momento da história. No caso, da história de uma face sempre escondida da sexualidade. E, se do alto de suas oito décadas de vida, Wilma Azevedo se expõe no palco de um bar fetichista, é porque tem o que dizer e merece ser ouvida. E lida.

A Vênus de Cetim

  • Preço R$ 21,90 (ebook)
  • Autoria Wilma Azevedo
  • Editora Fernanda Bonfim
  • Produção Devagar
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