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Giselle Beiguelman

Polêmica do Prêmio Jabuti com IA esquece que relação artista-máquina não é nova

É preciso entender essa tecnologia para melhorar transparência das plataformas de criação e de suas cadeias produtivas

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Giselle Beiguelman

Artista, autora de 'Políticas da Imagem' e professora do curso de Design da FAUD-USP. Coordena o Projeto Temático Fapesp Acervos Digitais e Pesquisa

A desclassificação de uma ilustração feita com inteligência artificial do Prêmio Jabuti causou polêmicas que tomaram as redes, indicando desconhecimento dos procedimentos de criação com essa tecnologia e a urgência de aprofundar o debate sobre seus aspectos éticos e legais.

Essas polêmicas remetem, primeiramente, à necessidade de separar o uso "funcionário" das máquinas, como denominou Vilém Flusser, da cocriação com sistemas maquínicos.

'Frankenstein' do Clube de Literatura Clássica, ilustrada por inteligência artificial
'Frankenstein' do Clube de Literatura Clássica, ilustrada por inteligência artificial - Reprodução

Cocriadores versus funcionários

Funcionário, nessa acepção, é aquele que o sistema transforma em seu objeto, condicionando-o a operar de acordo com suas regras. Já cocriação, implica revalidar as regras dos programas para constelar usos não previstos.

O poema "Um Lance de Dados", de 1897, de Mallarmé, esse "cabo das tormentas e/ou da esperança" da poesia, na definição do poeta Augusto de Campos, não seria possível sem os processos gráficos industriais que permitem sua leitura em múltiplas combinações.

As tecnologias industriais utilizadas em "Um Lance de Dados" foram aplicadas em suportes diversos, de páginas de jornal a bulas de remédio. Isso mostra que a "Mallarmagem" (outra definição de Campos) não é produto da técnica, mas produzida com ela.

O mesmo princípio se aplica a obras desenvolvidas com inteligência artificial, como o celebrado livro "Pharmakon AI" (2021), de K Allado-McDowell, uma obra tão humana e tão maquínica quanto as "Pinturas de Telefone" (1922) do artista, pioneiro da arte e tecnologia, László Moholy-Nagy.

Essa série de cinco pinturas em esmalte de porcelana sobre aço é uma espécie de bisavó do Midjourney, uma das ferramentas de IA generativas. Ela foi ditada pelo artista, por telefone, a um fabricante de placas, seguindo um catálogo de cores e um papel quadriculado que ambos tinham em mãos. "Assim, essas imagens não tinham a virtude do 'toque individual', mas minha ação era dirigida exatamente contra essa ênfase excessiva", escreveu Moholy-Nagy.

Não só o artista relativizava a autoria individual, explorando as novas mídias de sua época, mas abria a trilha para pensar o "prompt" (comando de texto para criar imagens com IAs) de forma mais crítica e criativa.

Definitivamente, não basta digitar um punhado de palavras para que inteligências artificiais desenhem. Nenhuma tecnologia é neutra e a densidade dos resultados do processamento de textos em imagens demanda um aprendizado próximo do que o artista Julio Plaza descreveu como "tradução intersemiótica".

Apropriação e autoria

É importante ressaltar, no entanto, que quando inserimos um "prompt", o programa não passa a "procurar" na Internet a imagem correspondente em um banco de dados existente. Plataformas como Midjourney, DALL-E ou Stable Diffusion não são programas de busca.

Quando alguém elabora um "prompt" que faz referência ao estilo de um artista, a inteligência artificial não se baseia diretamente nas imagens específicas desse artista, mas nos elementos que aprendeu a reconhecer, extraídos da massa de dados relacionados a esse mesmo artista —incluindo-se aí possivelmente os que foram influenciados por ele ou que o seu modelo reconheceu como semelhantes.

É nesse quadro "intersemiótico", ou de relações entre palavras, imagens e as formas como os sistemas as decodificam que as disputas de direitos autorais e questionamentos sobre apropriação se tornam mais complexas.

Nossa legislação define como autor um humano: "a pessoa física criadora de obra literária, artística ou científica." Nesse âmbito, compreendemos como apropriação um arco bastante amplo que vai do roubo ao plágio e também práticas criativas que remetem de Duchamp a Andy Warhol e da "sampelagem" ao remix.

Mas a autoria mediada por inteligência artificial endereça a um leque de interações com múltiplos agentes que não se esgotam nesses pressupostos e incluem: programadores dos seus algoritmos, grandes conjuntos de dados que alimentam o seu treinamento, as plataformas utilizadas e, obviamente, os próprios criadores que utilizam as IAs.

É essa rede de agentes que influencia e molda os resultados desse processo de autoria distribuída, difusa e legalmente confusa.

Abrir o código é preciso

Não é viável recuperar quais foram as fontes mobilizadas em uma determinada ação de um programa baseado em modelos fundados em milhões de dados, extraídos de incontáveis arquivos.

Contudo, é preciso reivindicar a transparência dos processos de aprendizado de máquina, com a publicação da documentação dos "datasets" utilizados, de forma a permitir verificar suas matrizes e licenciamentos.

A recusa da criação com inteligência artificial, por ser supostamente apenas maquínica ou, como muito se falou nos últimos dias, produto do capitalismo digital, apenas reforça a tendência à opacidade das plataformas de criação e de suas cadeias produtivas, baseadas na expropriação desenfreada.

Isso porque sistemas de geração de imagens, textos e áudio baseados em IAs estarão cada vez mais disponíveis, mais fáceis de trabalhar e prevendo usos massivos mais funcionários.

Não menos importante do que abrir o código, é compreender que a inteligência artificial é uma tecnologia a partir da qual é possível fabular novas relações criativas entre humanos e não humanos, para além da instrumentalidade das ferramentas e da autoria tal qual (ainda) a conhecemos.

Em conformidade com todas as discussões contemporâneas que pressupõem alteridades de todas as ordens, aventar a possibilidade de vida nas ruínas do capitalismo não é simplesmente procurar rotas de fuga em direção ao passado, mas disputar outros futuros.

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