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Javier Milei deixa toda a cultura na Argentina em alerta, diz poeta na Flip

Escritora argentina Laura Wittner debateu com Lubi Prates e Eliane Marques em dia lotado de discussões sobre poesia

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Paraty (RJ)

O penúltimo debate na tenda principal da Flip nesta sexta se aproximava do fim e, até aquela altura, se concentrava em questões específicas do universo literário. Três poetas e tradutoras —as brasileiras Eliane Marques e Lubi Prates, e a argentina Laura Wittner— falavam sobre temas como a transição de um gênero literário para o outro e a sonoridade das palavras.

Laura é uma mulher branca de cabelos ondulados e escuro. Ela veste vestido marrom e está sentada de pernas cruzadas
A escritora argentina Laura Wittner durante mesa da Flip nesta sexta-feira - Walter Craveiro/Flip

Até que, instada a falar sobre novos trabalhos, Wittner mencionou a preparação de três livros voltados para o público infantil. Projetos pessoais, contudo, pareciam secundários a ela neste momento, como deixou claro a seguir: "Quero ver como faremos com a cultura na Argentina depois da vitória de Javier Milei. Estamos em estado de alerta com o novo presidente, que toma posse em 10 de dezembro."

Eleito presidente da Argentina, o político de tendência ultraliberal já anunciou que pretende acabar com dez ministérios existentes hoje, como os de Cultura e Mulheres. Se não der fim a essas pastas, deve fundir as duas a outras.

Não parece em vão, portanto, a aflição de Wittner, que tem duas obras sendo lançadas no Brasil, o livro de poemas "Tradução da Estrada" e o ensaístico "Viver e Traduzir".

Esse foi o único momento em que a face mais conhecida da política, a partidária, deu o ar da sua graça no debate, mediado com discrição e eficiência pela poeta e professora portuguesa Patrícia Lino.

Antes, a política havia surgido sob seu viés racial, abordagem, aliás, mais uma vez muito presente nas mesas da Flip.

"Violências contra as populações indígena e negra deram para mim o sentido de que não pertenço a este país", afirmou a paulistana Lubi Prates, autora de um verso cada vez mais difundido. "Meu corpo é meu lugar de fala."

Lançado há cinco anos, "um corpo negro", escrito assim mesmo, em letras minúsculas, foi finalista do Prêmio Jabuti de poesia e ganhou traduções para países como Argentina, Espanha, Estados Unidos e França.

Prates também comentou sua atuação como tradutora, uma atividade que mudou depois que ela se reconheceu como uma mulher negra. "Decidi só traduzir mulheres negras", disse ela, que tem vertido para o português textos das americanas Maya Angelou e Audre Lorde. "Queria que as pessoas tivessem acesso às autoras que mudaram minha vida para que mudassem outras vidas."

Nascida na cidade gaúcha de Sant’Ana do Livramento, na fronteira com o Uruguai, Eliane Marques lembrou um dos projetos em que está envolvida, o selo editorial Orisun Oro. É uma iniciativa que traz ao Brasil livros de poetas negras da América Latina, como "Cabeças de Ifé", da cubana Georgina Herrera, traduzido por Marques.

No primeiro semestre deste ano, ela lançou "Louças de Família", que tem sido considerado o primeiro romance de Marques depois de uma série de livros de poesia, como "O Poço das Marianas", de 2021.

Segundo Marques, porém, não é bem assim. "Não sei se dei esse salto da poesia para o romance. Não precisamos nos ater a esses binarismos", diz ela, que ressalta a importância do ritmo para a construção dos seus textos.

A mediadora se referiu à obra de Marques como "sensorial e intuitiva", adjetivos que se distanciam da argentina Wittner, associada ao "fascínio pelo comezinho", como escreveu Caetano Galindo neste jornal.

À tarde, outros três poetas se encontraram na mesa "Terra de Fumaça Descoberta pela Guerra de Nossos Dias", para debater como a comunicação nos diferencia e une ao mesmo tempo.

Ilia Kaminski contou sobre a experiência de nascer quando sua Ucrânia natal ainda era parte da União Soviética. "Cresci como uma criança surda sem nenhum aparelho auditivo."

Sua primeira língua, portanto, não era nem o ucraniano nem o ídiche que os pais falavam. Era "a língua dos lábios", que permitiu a ele acessar segredos da "linguagem do silêncio", que explora em seu livro "República Surda", da Companhia das Letras, finalista do National Book Award.

Jorge Augusto, organizador de "Contemporaneidades Periféricas", da editora Segundo Selo, e autor de "O Mapa da Casa", da Círculo de Poemas, definiu como função da literatura também "dar a ver algo óbvio". Porque ele nos rodeia a tal ponto que, se não prestarmos atenção, acabamos por normalizar tudo, disse.

"É muito difícil sair de uma cidade onde moro, Salvador, a mais linda do mundo fora da África, e ao mesmo tempo a cidade que mais mata negros no Brasil."

Importa, portanto, "dar a ver o que já é visto, no jogo que a gente revela a fotografia, um jogo de luz e sombra".

Bruna Beber, de "Veludo Rouco", da Companhia das Letras, falou sobre sua tentativa de criar "uma espécie de coro para essas vozes que me criaram". Também resgatou seus primeiros anos, vividos nas fluminenses Duque de Caxias e São João do Meriti, onde a rua e suas malandragens, cantigas e jogos "estavam sempre chamando a gente".

Foi durante a mesa que veio a ela uma memória antiga, de uma das primeiras músicas que ouviu na vida, quando tinha uns seis anos e viajava com os pais num Fusca azul-petróleo.

A mãe ensinou a ela uma canção, "Seu Delegado", que começa falando de um viúvo que tem um filho homem e se casa com outra viúva. Numa cambalhota de relações interfamiliares, que inclui uma sogra muito teimosa "que com o meu filho foi se matrimoniar", o eu lírico fica perdido. "Nessa confusão, eu já nem sei quem sou, acaba esse garoto sendo meu avô."

Beber a cantarolou ao microfone, agradando a plateia ao rememorar sua "infância melodiosa".

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