Como inteligência artificial ameaça a dublagem no Brasil com substituição de atores

Profissionais do setor se mobilizam globalmente para evitar demissões e desvalorização artística pós greve de Hollywood

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Cena de montagem de 'Not I', de Samuel Beckett, para a televisão Reprodução

São Paulo

Depois de 118 dias, a greve dos atores em Hollywood acabou em novembro passado, mas a discussão ética em torno do uso da inteligência artificial para os estúdios reutilizarem a imagem e a voz dos artistas está longe do fim.

Atriz de dublagem, Cecilia Lemes, dubla a atriz Edie Falco que faz a enfermeira no seriado 'Nurse Jackie', em 2013 - Eduardo Knapp/Folhapress

No mesmo mês em que a paralisação terminou nos Estados Unidos —depois do acordo fechado entre o sindicato dos atores e os maiores estúdios de cinema e streaming— a United Voice Artists, associação internacional criada para representar atores da voz no mundo todo, lançou a campanha Real Voices, que pede a regulamentação da inteligência artificial para proteger a profissão dos dubladores no mercado mundial.

São cláusulas específicas de contratos com as distribuidoras que estão assustando os dubladores, por motivos semelhantes a aqueles que foram estopim para greve histórica em Hollywood no ano passado. Os atores queriam proteger seus rostos e trejeitos, e os dubladores temem pelo uso de suas vozes em criações novas, sem seu consentimento ou pagamento extra.

Mas, no caso dos dubladores, há um bode na sala —a possibilidade de sua profissão sumir, substituída completamente por ferramentas de inteligência artificial que serão capazes, por exemplo, de gerar falas de atores americanos em português, como uma espécie de tradução simultânea direto para a tela.

No Brasil, aliás, os filmes dublados são preferidos pelo público. Um bom exemplo é "Homem-Aranha: Sem Volta para Casa", um dos filmes de maior bilheteria nos últimos anos, que foi responsável por 82% das vendas dubladas nos primeiros meses de 2022. A dinâmica é similar no streaming. Cerca de 85% dos assinantes da Netflix preferiram assistir à versão dublada da série "13 Reasons Why", que fez grande sucesso quando lançada.

A United Voice Artists enviou um documento aos distribuidores exigindo que vozes gravadas para um determinado filme ou série não sejam usadas para alimentar as ferramentas de inteligência artificial sem a autorização expressa dos dubladores, segundo Sérgio Cantú, dublador, diretor e integrante ativo da UVA.

Isso porque os contratos de dubladores brasileiros são definidos nas matrizes dos estúdios americanos, que padronizam as regras de trabalho para outros países —que não mudaram após a greve americana, ele afirma. "Esses contratos são problemáticos e dúbios em vários aspectos e acabam ferindo, muitas vezes, a legislação dos países", diz Cantú, que deu voz ao protagonista Sheldon Cooper, no seriado "Big Bang - A Teoria".

O dublador, que também dará voz a Zack Efron em "A Garra de Ferro", com previsão de estreia no Brasil no mês que vem, diz que é comum encontrar nos contratos entre distribuidores e dubladores cláusulas que autorizam o uso da voz em tecnologias ainda não inventadas ou simulações. "Isso era para a época em que liberávamos o uso da voz no DVD e ainda não tinham inventado o Blu-Ray. Mas, em tempos de inteligência artificial, fica complicado."

Segundo Victor Drummond, diretor da Interartis, associação brasileira que reúne cerca de 3.000 artistas do audiovisual, as regras inseridas nos contratos preveem a reserva de vozes para outras finalidades.

"Com o novo mercado de streaming, não há possibilidade de negociação entre artistas e criadores e empresas. A vulnerabilidade é absoluta. Para trabalhar, é preciso ceder tudo e não há compensação econômica mínima", afirma.

Bruno Sartori, produtor de conteúdo através da deepfake, tecnologia que permite mixar rostos e vozes para vídeos hiper-realistas, acredita que a IA ainda não é desenvolvida o suficiente para substituir por completo o trabalho dos dubladores.

Existem duas formas para o uso da IA para a dublagem. A primeira, automática, apenas se apropriaria do timbre de voz de um ator americano —por exemplo, o Johnny Depp em "Piratas do Caribe"— para recriar as falas em português. O capitão Jack Sparrow, no filme dublado, teria a voz idêntica àquela de Johnny Depp, como se o ator soubesse falar em português.

"Nesse caso, a essência da arte seria perdida, porque é um computador tentando simular emoções. Não temos qualidade pra isso, e o emprego de muita gente seria tomado", diz Sartori. Mas há outra maneira de utilizar a IA. Nela, um profissional da dublagem é necessário para reproduzir a fala, e então o timbre do ator da produção original, como a de Depp, seria acrescentado a sua voz.

Bruno Sartori produz conteúdo usando o deepfake, tecnologia que mistura rostos e vozes em vídeos hiper-realistas. Ele diz que existem duas formas de usar a inteligência artificial na dublagem. Uma é automática e se apropriaria do timbre de voz de um ator —por exemplo, Johnny Depp em "Piratas do Caribe"— para recriar as falas em português. O capitão Jack Sparrow, então, teria a voz idêntica à de Depp, como se ele falasse português.

"Nesse caso, a essência da arte seria perdida, porque é um computador tentando simular emoções. Não temos qualidade para isso, e o emprego de muita gente seria tomado", diz Bruno Sartori. Mas há outra maneira de usar a tecnologia. Nela, um profissional da dublagem é necessário para reproduzir a fala, e então o timbre do ator da produção original, como a de Depp, seria acrescentado à sua voz.

Segundo Sartori, as duas opções estarão disponíveis num futuro próximo. "É provável que os dubladores sejam substituídos", diz. A única forma de evitar a perda de milhares de empregos seria regulamentar o recurso.

Segundo Flávia Fontanelle, diretora de dublagem de "Barbie", de Greta Gerwig, e atriz que deu voz a personagens como Candace, da animação "Phineas e Ferb", mesmo no caso em que o dublador seja contratado e o timbre, substituído, a tecnologia seria um retrocesso.

"A arte precisa de um lado humano que toca outro humano. A dublagem é viva, tem coisas que pensamos no ensaio, acrescentamos detalhes às cenas", diz.

"No estúdio, pomos bordão, meme que faz sentido para o público brasileiro. Como a inteligência artificial vai dar isso ao personagem?", pergunta a atriz Luisa Palomanes, que deu voz a Hermione Granger, de "Harry Potter", e a Docinho, de "Meninas Superpoderosas". "Queremos que seja uma ferramenta, mas não que substitua trabalhadores."

A tecnologia pode, lembra o dublador Sérgio Cantú, ser uma ferramenta de auxílio. Ele dá o exemplo de "Maestro", filme de Bradley Cooper que concorre ao Oscar, do qual ele foi diretor de dublagem. Seria possível, por exemplo, envelhecer a voz do protagonista com inteligência artificial, sem o esforço do dublador, que se concentraria na atuação.

Mas, para a ferramenta ser aceita, a United Voice Artists pede a transparência de contratos de trabalho, que devem informar quando a inteligência artificial será usada e exigir o consentimento dos dubladores sobre a reutilização das vozes. Num ponto mais delicado, deve garantir a remuneração do ator quando a sua voz for usada de novo.

"As pessoas se emocionam com a versão dublada, porque as vozes têm a cadência que elas estão acostumadas a ouvir", afirma Cantú. "Nós não fazemos a simples tradução, mas adaptamos para a nossa linguagem." Esse é o motivo, ele lembra, de a dublagem brasileira ser reconhecida internacionalmente pela sua qualidade.

"O Brasil foi um dos primeiros países a colocar interpretação própria na dublagem e, pelo tamanho de nossa população, somos um dos territórios mais importantes para distribuidoras."

A United Voice Artists também levará as demandas ao Parlamento Europeu, com o intuito de incentivar governos a legislar sobre o tema. No Brasil, Cantú ainda faz parte do movimento Dublagem Viva, que levará a pauta à ministra da Cultura, Margareth Menezes.

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