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Danilo Thomaz

Dave Chappelle não debocha, mas confronta influência das minorias

Piadas com pessoas trans e com deficiência no stand-up 'Sonhador' despertam risos na plateia, mas também revolta

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Danilo Thomaz

Jornalista com mestrado em ciência política pela Universidade Federal Fluminense

Logo na abertura de "Sonhador", seu especial que acaba de estrear na Netflix, o comediante americano Dave Chappelle explica o sentimento que teve ao conhecer Jim Carrey interpretando Andy –protagonista do filme "O Mundo de Andy"– fora do set de filmagem. Uma sensação de estranheza, por ver uma pessoa no papel de outra, que não a original. "É assim que as pessoas trans me fazem sentir", ele fala, arrancando risos da plateia formado por brancos e negros.

Entretanto, ele afirma que não vai "fazer piadas com trans, só com pessoas com deficiência", uma vez que os mesmos "não são tão organizados quanto os gays". E que, antes de ir preso, pediria para ser levado ao estado democrata da Califórnia e diria: "Eu me identifico como mulher" para ser detido em um presídio feminino, numa crítica evidente à "autodeterminação" de gênero.

O comediante americano Dave Chappelle
O comediante americano Dave Chappelle - Eduardo Munoz/Reuters

Suas piadas arrancam risos da plateia e da audiência virtual, mas também causam revolta entre aqueles que combatem o humor que ri de minorias políticas, num mundo em que raça, gênero e orientação sexual se tornaram categorias morais para determinados setores. Como é possível que um homem negro ria das condições físicas das pessoas ou deboche da autodeterminação de gênero?

O humor sempre atua na subversão de determinada ordem, mesmo numa esfera micro. E essa contestação, embora não pareça à primeira vista, está na raiz das piadas e risos provocados por Chappelle. Para tanto, é preciso olhar para além da moral, que nunca foi boa conselheira, e compreender o contexto histórico.

O humorista atua numa sociedade na qual um sistema político sem credibilidade e uma estrutura econômica decadente já não dão respostas às necessidades e aflições dos cidadãos. Ao contrário, por exemplo, do mundo da socialdemocracia europeia ou do New Deal americano.

A série de reformas econômicas e sociais iniciadas nos anos 1980 substituiu, paulatinamente, as políticas universais, de emprego e seguridade social, por políticas focalizadas. Foi a resposta à esquerda ao "There is no alternative" do admirável novo mundo criado pelo ex-presidente americano Ronald Reagan e a primeira-ministra britânica Margaret Thatcher.

Enquanto houve crescimento econômico, até a crise de 2008, a atenção a pequenos grupos sociais incomodou, mas não gerou revolta. Numa conjuntura de crescimento, há, como explica o economista Albert Hirschman, a perspectiva de ver a sua fila andar dentro do túnel.

Quando essa esperança de ver a fila andar se esvai, como num cenário de estagnação ou recessão vividos a partir de 2008, esses grupos parcialmente atendidos passaram a ser vistos como privilegiados. Não importa o fato, mas a percepção social. Assim, o incômodo se transformou em revolta.

É este sentimento que acaba sendo vocacionado por figuras como Dave Chappelle. Afinal, que maneira melhor de se vingar senão pelo riso, uma das mais antigas formas de punição social?

O humor de Chappelle fala, assim, ao seu tempo. Ele não debocha das pessoas trans, deficientes físicos e mulheres. O humorista confronta a influência, real ou relativa, que o movimento LGBT, o movimento feminista e outros adquiriram ante setores que só se veem perdendo espaço político e econômico.

As reações a ele –que superestimam sua influência– também são fruto dessa sociedade em processo de esgarçamento. São processos que se retroalimentam.

Ao deixar de lado as soluções materiais e adotar a condenação moral e as medidas repressoras –como as restrições à liberdade de expressão e o cancelamento– como forma de combate, os setores da esquerda conseguem a repercussão e a ilusão desejadas, de que há uma indignação social.

No entanto, o barulho das reações ressoa tão somente junto a setores com poucas preocupações materiais, que só frequentam ambientes descolados. Não significam nada para o grosso da população. Quando não, estimulam o ressentimento social.

Dave Chappelle: Sonhador

  • Onde Disponível na Netflix
  • Classificação 14 anos
  • Elenco Dave Chapelle
  • Produção EUA, 2023
  • Direção Stan Lathan
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