Descrição de chapéu
Naná DeLuca

Dave Chappelle sonha um sonho medíocre em especial da Netflix

Outrora genial, comediante torna-se clichê ensimesmado e máquina de piadas transfóbicas e capacitistas

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Naná DeLuca

Jornalista da Folha e mestre em letras pela USP

São Paulo

Quando Dave Chappelle se move, apenas Dave Chappelle se move com ele. Ao menos é esta a impressão deixada por seu stand-up "Sonhador".

Nos primeiros minutos, o comediante desemboca para uma sequência de piadas transfóbicas —não "piadas com pessoas trans"—, marca registrada de seu trabalho nos últimos anos. Isso se transforma numa sequência de piadas capacitistas.

Dave Chappelle se apresenta no Madison Square Garden, em Nova York, em agosto de 2023 - Eduardo Munoz/Reuters

A retórica de Chappelle é de que o "inimigo agora é outro" —diz que deixará de lado pessoas trans para fazer piadas de pessoas com deficiência. Segue-se uma desumanização desses dois grupos.

É estéril o debate em torno dos limites para o humor e impossível que cheguemos ao consenso. O exercício intelectual até é possível, mas não funciona na prática.

Comediantes sempre encontrarão quem ria de suas piadas, quem não ache graça e quem as abomine. Os humoristas mais medíocres recorrem à estratégia de eleger um grupo minoritário ou um indivíduo, e irão se agarrar numa suposta subversão "politicamente incorreta".

Por isso, é bom pensar na relação humor-opressão. Especialmente no caso de Chappelle, que nos põe diante da interseccionalidade de forma flagrante.

Em seu stand-up anterior, "Encerramento", ele defende J.K Rowling e diz ser "time TERF" —sigla para feminista radical transexcludente.

Acontece que esta corrente tem raízes notoriamente problemáticas, pondo a desigualdade de gênero como raiz de toda desigualdade social, desconsiderando o racismo e seus efeitos na trajetória de pessoas negras.

Que um homem negro diga, hoje, ser "time TERF" é risível, mas não pelos motivos que planejara. Chappelle parece acreditar que todas as pessoas trans são brancas e privilegiadas, ignorando o efeito negativo de suas piadas.

A comédia é um poderoso instrumento, capaz tanto de libertar quanto privar grupos inteiros —em "Sonhador", Chappelle exclama: "mas quem convidaria um paraplégico para uma orgia?"

Pessoas com deficiência não têm desejos, corpos? Excluí-las de uma vivência como o sexo e usar isto para o riso é a marca do comediante medíocre. Assim como é medíocre Danilo Gentilli chamando de "vaca" a maior doadora de leite materno do Brasil.

"Eu sou um sonhador poderoso", diz Chappelle em outro momento. Não tanto quanto imagina, pois debocha dos sonhos alheios. Faz isso com Lil Nas X, quando imita o cantor pop na infância, falando do seu objetivo: "vou ser o preto mais gay da história!"

O cantor recebeu do Trevor Project um prêmio por seu trabalho na prevenção do suicídio entre jovens LGBT. Este sonho não vale mais nem menos que os sonhos do comediante.

Se Chappelle é um sonhador poderoso, ele sonha por um homem só. Que graça tem isso? Faria bem se lembrasse o restante da citação de Thoreau que abre "Sonhador": "Se alguém avança confiante na direção de seus sonhos e se esforça para viver a vida que imaginou, encontrará sucesso inesperado no curso natural das horas". Logo a seguir, no trecho suprimido de "Walden", lê-se: "Deixe que cada um cuide de si e se esforce para se tornar o que foi feito para ser."

Dave Chappelle: Sonhador

  • Onde Disponível na Netflix
  • Classificação 14 anos
  • Elenco Dave Chapelle
  • Produção EUA, 2023
  • Direção Stan Lathan
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