Descrição de chapéu

Vencedor do Goya, 'As Bestas' enfrenta toda a complexidade humana

Filme de Rodrigo Sorogoyen aborda a xenofobia no universo rural espanhol para construir um grande suspense sufocante

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As Bestas

  • Onde Em cartaz nos cinemas
  • Classificação 14 anos
  • Elenco Denis Ménochet, Marina Foïs, Luis Zahera
  • Produção Espanha, França, 2022
  • Direção Rodrigo Sorogoyen

O cenário é uma mesa de bar na Galícia, comunidade autônoma no noroeste da Espanha. Nesse ambiente escuro, notavelmente abafado e claustrofóbico, galegos de meia-idade conversam enquanto jogam dominó. A câmera passeia pelos seus rostos, pelo jogo à mesa, pelos copos vazios e pelo grande homem que, bebendo sentado à bancada, parece estar alheio ao assunto.

"Quando acha que foi o último francês mandado à guilhotina?", Xan, personagem de Luis Zahera, pergunta. Em 1977, ele mesmo responde, acrescentando "maldito país de selvagens".

Cena do filme 'As Bestas', de Rodrigo Sorogoyen
O ator Denis Ménochet do filme 'As Bestas', de Rodrigo Sorogoyen - Divulgação

Essa cena, que poderia ser apenas frívola num ambiente rural, ganha contornos de suspense em "As Bestas" e antecipa uma das principais marcas do longa dirigido por Rodrigo Sorogoyen —o mergulho na violenta complexidade das relações humanas, ressaltado por subjetividades capazes de, num espaço de opressão generalizada, suspender qualquer tentativa moral de categorização.

Isso porque é diante do preconceito e do ressentimento que Xan interpela o grande homem da bancada —o protagonista Antoine, interpretado por Denis Ménochet— quando este se dirige à saída.

São esses sentimentos, misturados ao desejo de ascensão social e ao medo do abandono, que fazem escalar a xenofobia implícita nesse que é um dos primeiros diálogos do filme a uma tortura psicológica e concreta frente àquilo que é estrangeiro.

Antoine é francês, casado com Olga, papel de Marina Foïs, uma mulher também francesa. Juntos, eles se mudaram para a Galícia, onde restauram casas abandonadas, muitas delas em ruínas, para devolver os imóveis, sem fins lucrativos, à população. É um modo de dar de volta à comunidade, como ele mesmo explica, tudo aquilo que recebeu.

Mas ele é também visto como um empecilho pelos homens dessa mesma comunidade por votar contra a instalação de um parque eólico na região, empreendimento que, como acreditam parte desses homens, pode alterar a condição de miséria em que vivem.

Frente a esse embate, é necessário domar o homem, tal como são domesticados os cavalos selvagens que habitam os arredores.

A construção da violência no longa de Sorogoyen ocorre em crescente quando são estabelecidos os signos da diferença entre aquele que chega e aquele que lá está. O que se inicia como um aparente descontentamento se revela mais profundo, e o conflito, que até então estava contido às brincadeiras de mau gosto e às ameaças veladas, se torna tangível.

Concomitante à presença do perigo, ainda resta espaço para discutir a ineficiência e o desinteresse das autoridades, que insistem em manter no âmbito privado uma discussão que é pública; as construções das masculinidades e das feminilidades, que dão contexto e subtrama à representação daquilo que se mostra agressivo; e as diferenças culturais de povos seculares, que se manifestam nas formas mais simples de apreender o mundo.

Um exemplo que impressiona é a confiança que Antoine deposita numa filmadora, usada simultaneamente como instrumento de defesa e ataque diante das ações, materiais, do inimigo autodeclarado.

Ao passo em que o equipamento indica, com certa precisão, o hábito atual de registrar para constranger, ele acaba se mostrando ineficiente ao longo da narrativa. Não só porque a câmera é incapaz de, por si própria, salvar seu portador, mas porque a lógica por trás do ato de intimidação faz pouco sentido num espaço que funciona segundo outras regras e costumes.

Toda essa ambientação faz com que "As Bestas" se torne um filme inquieto, tenso, prestes a explodir. E a Galícia, registrada em seu esplendor bucólico, com planos abertos capazes de singularizar a beleza na imensidão, é transformada num microcosmo do que pode ser a sociedade europeia contemporânea, tão aterrorizada quanto perversa.

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