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Mohamed Mbougar Sarr escancara como silêncio ajuda o autoritarismo

Senegalês conhecido por 'A Mais Recôndita Memória dos Homens' evidencia poder das palavras em 'Terra Silenciada'

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Diogo Bercito

Mestre em estudos árabes pela Universidade Georgetown, foi correspondente da Folha em Jerusalém e em Madri

Terra Silenciada

Malamine vai à praça pública assistir a uma execução. É mais uma demonstração de força da milícia religiosa que controla uma cidade fictícia na África chamada Kalep. O pecado do rapaz e da moça: ter relações sexuais antes de se casar. A punição: humilhação e fuzilamento.

Na hora da morte, a mulher sussurra alguma coisa, mas ninguém a escuta. Tocado por aquela ideia —a de que a última mensagem da moça ecoou no silêncio— Malamine decide agir. Quer combater os milicianos. A sua será, porém, uma revolução de palavras. Ele recruta intelectuais da região para escrever um jornal.

capa de livro
Detalhe da capa de 'Terra Silenciada', de Mohamed Mbougar Sarr, publicado no Brasil pela editora Malê - Reprodução

A dinâmica entre o dito e o não dito é, desse modo, um dos motores do romance "Terra Silenciada". O silêncio sugerido pelo título não se refere apenas ao segredo da mulher morta, como também ao relacionado à própria tomada de Kalep por extremistas quatro anos antes, evento diante do qual muitos se calaram.

O senegalês Mohamed Mbougar Sarr, 33, já tinha tocado leitores com "A Mais Recôndita Memória dos Homens", romance pelo qual recebeu o prêmio Goncourt, o mais importante da literatura em francês. Foi o primeiro escritor da África subsaariana a receber o troféu.

O lançamento de "Terra Silenciada", de 2015, deve agradar os fãs e conquistar novos com uma outra dose de lirismo e aguçada crítica social.

Escondidos num porão, o protagonista e seus companheiros redigem e editam o panfleto revolucionário e o distribuem pela cidade. A coragem —alguns dizem loucura— catalisa uma série de acontecimentos. Fica em evidência o papel do silêncio na instalação de regimes autocráticos e o poder da palavra no seu combate.

Sarr explora com profundidade e sutileza o contexto que permitiu a ascensão de organizações radicais em Kalep. Fala de um lugar na África, mas poderia se tratar de qualquer outro ponto do mundo.

Apesar de sua posição ser clara, Sarr é capaz de algum distanciamento. Trata do antagonista —Abdel Karim Konaté, o fervoroso chefe da polícia islâmica— com nuances, evitando julgamentos fáceis. Afinal, diz o narrador, "o mais selvagem e mais difícil dos homens sempre tem, no curso pedregoso de sua existência, algum momento de ternura". Konaté é um violento radical. Mas tem também sua doçura.

As nuances de Sarr aparecem também na estrutura do texto. A narrativa se intercala com cartas das mães dos dois jovens executados no começo do livro. Apesar da perda em comum, elas seguem caminhos diferentes.

Uma delas acredita na necessidade de o povo se erguer contra a tirania da milícia religiosa. A outra não vê vantagem nisso. É quiçá um bom resumo das atitudes possíveis, no mundo, diante de situações extremas.

Sarr explora, ainda, a própria ideia de "povo". Seus personagens não entram em acordo quanto à natureza das massas. Talvez sejam manipuláveis, talvez não. São imprevisíveis —para o bem e para o mal.

Alguns termos aparecem em árabe no texto, marcando o discurso religioso dos personagens. Mas o uso dessas palavras acarreta duas questões que poderiam ter sido mais bem pensadas na edição.

A primeira é o emprego do termo "Alá" em alguns trechos para se referir a "Deus". Essa escolha é ruim, em termos religiosos, porque dá a entender que a divindade do Islã é diferente daquela do cristianismo. Só que "Alá" é apenas a palavra árabe para "Deus." É como "God" em inglês ou "Dios" em espanhol. Muçulmanos, afinal, acreditam na mesma divindade do que os cristãos.

O outro problema é mais técnico. Sempre que grafamos uma palavra árabe em português, fazemos o que linguistas chamam de "transliterar", porque o árabe tem um alfabeto diferente do nosso.

A edição brasileira mantém a transliteração do francês original. Há por exemplo a frase "Allahou akbar" (Deus é maior). O "ou" aqui é o modo francês de exprimir o som de "u". Não faz sentido manter no Brasil. Seria mais correto deixar como "Allahu", como falamos.

Podem parecer detalhes. Mas, no esforço de trazer novas narrativas para o público brasileiro, vale a pena se ater a essas minúcias —até porque, como Sarr mostra no seu romance, as palavras têm poder.

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