"Fiordilatte" começa com uma cena de sexo "hardcore" típica de sites de vídeo pornô. Mas o enquadramento é estranho, fixo no rosto da protagonista. Vemos pela cara amassada, o rímel escorrido e os balões de fala com gritos que ela não está à vontade. Ainda assim, ela goza e chama o outro de "amor". Quem fica menos à vontade é o leitor.
A Itália é um país de mestres de quadrinhos eróticos, como Milo Manara, Paolo Serpieri e Giovanna Casotto. Miguel Vila, o autor de "Fiordilatte", também é italiano e também fez uma HQ erótica. Mas nela, foge dos corpos idealizados e das transas olímpicas retratadas por seus conterrâneos.
Começando pelo casal da obra, Marco e Stella. Recém-saídos da adolescência, os dois têm corpinhos rechonchudos e transam na casa dos pais dela. Ou tentam, porque Marco não consegue manter uma ereção. Stella consola o namorado, mas não esconde a angústia: ele não gosta dela?
Stella é babá do bebê de Ludovica. Ao ser apresentado à mãe lactante, Marco se choca com seus seios descomunais. Chega em casa e digita "tetas grandes cheias de leite" no Pornhub. É a cura da impotência. Marco descobre que tem uma tara.
Marco começa uma relação com a farta Ludovica, que os dois têm que esconder de Stella. Novos personagens entram em jogo, e o triângulo amoroso vira quadrado, depois pentágono. Há mais cenas de sexo incômodas, mais seios sufocando rostos e muito, muito leite.
A maneira como Vila conta a pendenga amorosa é o destaque da HQ —e um dos motivos para o segundo trabalho do quadrinista ter ganhado o Micheluzzi e concorrido ao troféu do Festival d’Angoulême, dois prêmios que estão entre as mais prestigiados da Europa.
A maioria dos quadros do álbum é minúscula, com retratos apertados dos personagens. Há páginas em que a composição deixa grandes áreas em branco, de modo a criar trilhas que remetem a partituras musicais. Outras vezes, os desenhos viram esquemáticos, lembrando os do americano Chris Ware no tamanho e no estilo.
Quando Vila amplia os quadros e faz um "zoom" em um rosto, porém, os personagens ganham uma riqueza de detalhes que lembra a das figuras feiosas do lendário Basil Wolverton, conhecido por sua produção para a revista Mad. As estrias, os pelos mal aparados (no rosto e em outras partes do corpo), a comida presa no meio de dentes tortos, as veias saltadas. Milo Manara passaria longe.
A diagramação particular e os "zooms" são acompanhados por uma paleta de cores que lembra os sabores na sorveteria onde Ludovica trabalha, a "Fior di Latte" (creme de leite) que dá nome ao quadrinho. Tudo é retratado em tons pastel infantis, de rosa, azul e amarelo.
Se Vila não conversa com seus conterrâneos quando se trata de erotismo, ele acena a outra escola famosa na Itália: a do realismo social. Stella vem de uma família rica e ajuda a pagar as contas de Marco, o namorado traidor. Ela mesma não precisa trabalhar, e vira babá do filho de Ludovica em razão, quem sabe, de um ideal de compromisso com as classes menos abastadas. Chama a patroa pobre de "caipira" por falar errado, no entanto.
Marco usa o dinheiro de Stella para satisfazer necessidades de Ludovica. Ludovica, por sua vez, não é boba e arma suas próprias tramoias para explorar os dois. Ainda assim é usada, por Marco e por outros, em um sentido que colabora para outro tema do álbum —desmanchar fantasias eróticas propagadas pelo pornô de internet.
Apesar de ser um quadrinho erótico, "Fiordilatte" deve excitar poucos. O "hardcore" que ele retrata não é o do sexo, é o das relações.
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