Descrição de chapéu Festival de Veneza

Último filme de William Friedkin é obra madura que compensa juventude errática

Obra que narra motim em alto-mar estreou no Festival de Veneza após a morte do diretor de 'O Exorcista' em agosto

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Veneza (Itália)

O cineasta americano William Friedkin tinha dois grandes motivos para vir ao Festival de Veneza deste ano. Apresentaria seu novo longa, "The Caine Mutiny Court-Martial", inspirado em um bem-sucedido espetáculo de teatro, e uma versão restaurada daquele que provavelmente seja seu filme mais conhecido, "O Exorcista", que tirou o sono de muita gente quando lançado em 1973.

Mas o diretor morreu no dia 7 do mês passado, aos 87 anos, então sua presença no Lido será mesmo apenas por meio de suas obras. Exibido em sessão especial, fora de competição, "The Caine Mutiny Court-Martial" teve sua estreia mundial com ares de homenagem póstuma, recebendo comovidos aplausos dos espectadores ao fim da sessão para a imprensa.

Cena de 'The Caine Mutiny Court-Martial', de William Friedkin
Cena de 'The Caine Mutiny Court-Martial', de William Friedkin - Divulgação

Não se trata de um filme com as características estéticas mais marcantes da obra de Friedkin e nem com o senso de ritmo que tornou produções como "Operação França", de 1971, um clássico imediato entre os thrillers policiais.

O novo filme é uma adaptação da peça teatral homônima de Herman Wouk, que por sua vez é inspirada em um livro vencedor do Pulitzer do mesmo autor, "The Caine Mutiny". O romance já havia sido levado às telas em 1954, "A Nave da Revolta", estrelado por Humphrey Bogart e dirigido por Edward Dmytryk.

A trama se passa quase que totalmente em um tribunal militar. Vemos o julgamento de um tenente da Marinha dos EUA, acusado de liderar um motim em pleno alto-mar, quando o navio tripulado Caine fazia operações no Oriente Médio. Repentinamente, um ciclone se aproximou da nave, fazendo com que a maior liderança a bordo, o tenente-comandante Queegs, ordenasse que o navio saísse do rumo previsto. Mas o tenente Maryk e mais outros militares de patente inferior achavam que a rota colocaria o Caine em risco e que Queegs agia durante uma crise psicótica, então boicotaram suas coordenadas e seguiram o trajeto que acharam melhor.

No julgamento de Maryk, vemos testemunhas de acusação e de defesa. Kiefer Sutherland tem uma atuação precisa e inteligente no papel do esquisitão Queegs, que embora talvez não exatamente chegasse a ter crises psicóticas em pleno alto-mar, certamente não era um homem de comportamento comum ou uma personalidade das mais afáveis. Tinha um lado maníaco, sobretudo no que diz respeito à disciplina. Assim, conquistou a birra da maior parte de seus subalternos, o que talvez os tenha influenciado em sua decisão de se insurgir contra suas ordens durante a tempestade.

Para um filme com tanto palavrório e envolvendo tantos detalhes do mundo militar –a profusão de nomes de patentes e de códigos da Marinha por vezes tornam as falas um bocado enfadonhas–, trata-se de um longa surpreendentemente fluido e até envolvente. Até porque há varias questões sobre o comportamento humano em momentos de crise que ficam expostos ali: o complexo de inferioridade, o desejo de vingança, a sensação de injustiça…

A corte marcial, tanto no comportamento dos que acusam quanto na dos que defendem, é um microcosmo com características muito parecidas com o mundo do lado de fora dali. Não é bem o filme de despedida que se esperava de Friedkin, mas é menos ainda um canto de cisne frustrante. É obra de um homem ponderado, sereno, como talvez o cineasta tenha se tornado com o avançar da idade, para compensar a errância comportamental de sua juventude.

Na competição pelo Leão de Ouro, o francês Bertrand Bonello apresentou um dos filmes mais intrigantes desta edição do festival. "The Beast" é uma poderosa parábola futurista que discute questões como o poder da inteligência artificial, o excessivo individualismo da sociedade de hoje e a insustentabilidade do mundo tal como o conhecemos atualmente.

A trama emaranhada tem cenas em pelo menos três épocas distintas, em que Léa Seydoux ressurge interpretando variações sobre a mesma personagem. Em todas ela se chama Gabrielle, que no passado era uma pianista de sucesso, hoje é uma atriz tentando se manter na carreira, e no futuro é uma entre os 67% da população mundial desempregada, diante de um massacrante processo de informatização do trabalho.

Nas três épocas ela encontra e se envolve com um rapaz vivido por George MacKay, do qual temos menos informações, mas que no passado era um galanteador sofisticado, no presente é um incel com ódio do resto da humanidade, e no futuro é um homem desempregado como ela.

Em seu filme mais recente, o experimental "Coma", de 2022, Bonello já mostrava uma enorme influência de David Lynch, o que se repete mais uma vez em "The Beast", que em vários momentos lembra o cinema de ruptura narrativa e símbolos obscuros de "Cidade dos Sonhos", de 2001, e o nonsense bizarro de "Império dos Sonhos", de 2006.

Bonello é um cineasta inquieto e por vezes até mais pretensioso do que seu cinema consegue entregar, mas o delírio que ele propõe aqui tem uma fascínio muito próprio. A fragmentação da narrativa é peculiarmente instigante, ao mesmo tempo em que o filme é bem-sucedido ao trazer à tona questões muito pertinentes ao momento atual –o diretor é um dos grandes observadores sociais do cinema contemporâneo.

Muita gente há de se irritar com a ausência de pistas sobre como os personagens se conectam, mas fica clara a visão do diretor, que mostra certo saudosismo com o que a humanidade já foi, apesar de suas limitações, um enorme ódio e desprezo pelo monstros narcisistas que todos nos tornamos no mundo atual e seu pessimismo diante do que nos espera dentro de alguns anos. É sem dúvida um dos filmes mais relevantes apresentados em festivais neste ano.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.