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Como 'Ripley', adaptação da Netflix, relê sucesso de Patricia Highsmith em série

Escritora lésbica espelhou suas dores e polêmicas em obras que marcaram a ficção com variadas adaptações cinematográficas

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Ripley

O ator Andrew Scott interpreta Tom Ripley na série 'Ripley', da Netflix Philippe Antonello/Divulgação

São Paulo

Casinhas equilibradas sobre penhascos às margens do mar Mediterrâneo surgem em cena em plena decadência napolitana. Elas têm paredes centenárias caindo aos pedaços e oratórios com santas descascadas por toda a parte. A beleza tão avassaladora quanto carcomida da costa da Itália é o cenário perfeito para os crimes de Tom Ripley.

Ripley
Andrew Scott como Tom Ripley na série 'Ripley', da Netflix - Philippe Antonello/Divulgação

O vilão camaleônico, criado em 1955 pela escritora Patricia Highsmith, falsifica assinaturas, finge ser quem não é e até mata para chegar aonde quer, enganando todos à sua volta. Ripley se tornou um ícone atemporal da ficção americana, saindo dos livros para conquistar as telas múltiplas vezes —e, mais do que isso, foi um dois raros personagens LGBTQIA+ a não ter o seu arco narrativo marcado pela homofobia, com condenações à amargura ou à morte sem contexto.

O livro "O Talentoso Senhor Ripley" já deu vida a dois filmes, "O Sol por Testemunha", com Alain Delon, e o longa homônimo que eternizou, há 25 anos, Matt Damon como Tom Ripley e Jude Law como Dickie. Highsmith escreveu também "Strangers on a Train", de 1950, levado às telonas por ninguém menos do que Alfred Hitchcock, como "Pacto Sinistro", e "The Price of Salt", publicado em 1952 sob pseudônimo. Este último foi pioneiro na literatura por narrar um romance entre duas mulheres com um final feliz. Virou o filme "Carol", pelas mãos de Todd Haynes, em 2015, estrelado por Cate Blanchett e Rooney Mara como um casal.

Agora, Tom Ripley é encarnado por Andrew Scott numa adaptação da Netflix. Filmada quase toda em branco e preto, a série confere uma aura noir à trama, que combina com o charme do personagem. O ator britânico assume o papel depois de seu sucesso como padre sensual em "Fleabag", drama cômico de Phoebe Waller-Bridge, e de sua interpretação melancólica no romance gay "Todos Nós Desconhecidos" que, ao lado do indicado ao Oscar "Vidas Passadas", se dedicou a uma reflexão dolorosa sobre as relações amorosas.

O Ripley de Scott é desajeitado no primeiro contato com Dickie, um playboy americano que vive na Itália bancado pelo pai. A trama, como no livro de Highsmith, começa quando o empresário confunde Ripley com um amigo do filho e se propõe a bancar sua viagem à Europa, para que ele convença Dickie a voltar para casa.

Os passeios de barco e a falta de noção dos amigos mimados de Dickie parecem despertar desprezo em Ripley, ainda que a riqueza e o prestígio social sejam coisas que ele deseja —e está convencido a conquistar, custe o que custar.

"Não acho que ele é vilão ou psicopata, acho que ele não conseguiria ser apenas vilanesco. Não quero diagnosticar nenhum traço seu. Há algo nele que não é possível entender completamente" diz Andrew Scott, em entrevista. O ator se esforçou para evitar repetir atuações anteriores do personagem. "Se você entende quais são os pensamentos dele, acho que é possível entender seus motivos, e então seus sentimentos."

Mas, se Ripley quer ser ou substituir Dickie, ele é apaixonado por ele na mesma medida. Os sentimentos perturbados do protagonista espelham, de alguma forma, a vida da própria Patricia Highsmith, que experienciou a dura realidade de ser homossexual nas décadas de 1940 e 1950, quando ser lésbica era visto como doença e crime.

Ainda que não tenha sido tão perversa quanto sua criatura, Highsmith viveu mergulhada em controvérsias. Em seus diários, relatou relacionamentos com múltiplas amantes, geralmente conturbados e por vezes violentos. Se amava mulheres na cama, fora dela costumava estar na companhia de homens. Pessoas próximas relataram seu prazer em gerar desconforto social com comentários maliciosos. No fim da vida, ficou marcada pelo antissemitismo.

Da mesma forma que Tom Ripley, com quem dizia se identificar, Highsmith costumava se relacionar com mulheres ricas e, em seus diários, fantasiava constantemente, misturando realidade e ficção. Depois de uma infância difícil, desenvolveu depressão e alcoolismo na vida adulta, sentia ódio de tudo e todos, preferindo isolar-se com seus gatos e lesmas —bichos pelos quais era obcecada. Viveu a maior parte da vida na Europa, em rejeição ao sonho americano, e chegou a desenhar as paisagens italianas onde Ripley cometeria assassinatos apaixonados.

Sua biografia talvez ajude a explicar os personagens que almejam romper com as amarras sociais, às vezes apelando para seus desejos mais obscuros. Tampouco é estranho para pessoas LGBTQIA+ precisarem fingir algo que não são, como a própria Highsmith fez no começo da carreira.

É nesse jogo de dissimulação, com suspenses cheios de emoções dramáticas e ambientados em lugares glamurosos e encharcados de tensão sexual, que ela parece ter encontrado a fórmula para o sucesso. E, apesar dos seus atos horríveis, Ripley sofre pelo amor não correspondido e pela rejeição da sociedade.

Contrariando uma história triste, ele escolhe revidar as crueldades que foram impostas e ele, pronto para abocanhar o mundo de uma elite que tudo tem sem nada fazer —conquistando, assim, a torcida do público, o seu maior triunfo.

Ripley

  • Quando A partir de 04/04. Disponível na Netflix.
  • Onde EUA
  • Classificação 16 anos
  • Elenco Andrew Scott, Dakota Fanning e Johnny Flynn
  • Produção Steven Zaillian
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