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Jairo Malta

Como Virada Cultural de São Paulo foi de uma referência a um fiasco

Evento com orçamento recorde de R$ 60 milhões deixou de valorizar o centro e perdeu artistas ícones da música brasileira

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Jairo Malta
Jairo Malta

Designer, fotógrafo e jornalista. É autor do blog Sons da Perifa.

É noite de sábado, em maio de 2014, e passeio ao lado dos meus pais e irmãs pelo centro de São Paulo. Nas imediações da Pinacoteca, entre os vãos do museu, um grupo de rap canta suas rimas, marcando aquela que seria uma das experiências mais marcantes para a história da minha família em uma Virada Cultural.

Uma década depois, o brilho do evento foi ofuscado por violência, desleixo com os artistas e o público e um sentimento de tristeza com o potencial desperdiçado.

O ponto de inflexão ocorreu em 2017, durante a gestão de João Doria, que introduziu uma política de descentralização do evento. A ideia era dispersar as atividades por toda a cidade, afastando-se do modelo concentrado que havia sido cuidadosamente aprimorado desde a sua criação em 2005, sob José Serra.

Público acompanha show de Pabllo Vittar para a Virada Cultural no vale do Anhangabaú, em São Paulo
Público acompanha show de Pabllo Vittar para a Virada Cultural no vale do Anhangabaú, em São Paulo - Eduardo Knapp/Folhapress

Essa mudança resultou em uma série de palcos vazios em locais como o Sambódromo do Anhembi e o Autódromo de Interlagos, com artistas notáveis como Fagner e Alcione destacando a falta de público e infraestrutura adequada.

Levar shows para as periferias não é o problema. Em 2022 e 2023, esses palcos, que apresentavam três ou quatro espetáculos, foram os mais seguros e atraíram um público diverso, desde bebês de colo até idosos. Mas esse formato foge do objetivo principal da Virada, que, além de ser um evento com 24 horas de programação contínua, visa ocupar o centro.

O centro de São Paulo, historicamente frequentado apenas para trabalho pela grande maioria da população dos extremos, perde a oportunidade de ser redescoberto como um espaço de cultura e convivência.

Uma primeira sequela que temos pelo município ao apostar na ampliação do território dos shows, além dos altos cachês dos artistas, é o custo estrutural final do evento. Este ano, a Virada custou quase R$ 60 milhões aos cofres públicos, 30% a mais do que no ano passado.

Em paralelo a isso, as 20 Casas de Cultura da cidade, incertas se serão ou não privatizadas, receberam no ano passado R$ 19,28 milhões para manutenção e operação e R$ 8,86 milhões para programação de atividades. E são nestes espaços culturais que a periferia tem contato com a cultura durante o ano.

Esse formato não diminuiu a violência no centro de São Paulo. Em 2022, vimos um apocalipse acontecer —gritos de arrastões, agressões, relatos de esfaqueamentos e uma sucessão de roubos e furtos assombram o vale do Anhangabaú. Apresentações foram interrompidas pelas brigas e pessoas desmaiaram, tudo aos olhos da segurança pública, que teve uma ação questionável.

Para não reviver o trauma, a Virada de 2023, com o orçamento até então recorde, de R$ 40 milhões, apostou ainda mais nos extremos da capital e nos espaços de cultura fechados. No centro, cercou toda a área do vale do Anhangabaú, instalando câmeras e destacando policiais em torres, transformando o local em uma espécie de festival privado, onde não houve nenhuma ocorrência de furto ou violência.

O resultado foi um evento ainda mais esvaziado, e o clima de medo, herdado do ano anterior, provocou uma debandada noturna, deixando uma sensação de vazio.

O povo paulistano já viu um dia a Virada Cultural como o principal evento do ano. Imaginar uma cidade como São Paulo virando a noite com shows de artistas consagrados internacionalmente, onde você pode comer comidas típicas de diversos lugares do país, comprar utensílios e ainda usar o metrô para voltar para casa, deveria ser o principal produto turístico do município.

O que acompanhamos, porém, é o evento se transformar em um grande elefante branco, onde nenhum dos secretários de cultura nos últimos dez anos conseguiu domar.

O line-up nada proeminente, com artistas como Léo Santana, Leonardo e Pabllo Vittar, recorrentes em apresentações abertas no Carnaval de São Paulo, só nos faz sentir nostalgia dos tempos áureos do evento, quando assistimos a ícones como Caetano Veloso e Racionais MC's. Estamos contentando com uma versão diluída do nosso potencial cultural.

Essas reflexões trazem uma espécie de ceticismo sobre o que esperar da próxima edição da Virada Cultural, que terá comemorado 20 anos. Como esse evento vai evoluir ou se reinventar diante dos desafios atuais, e sob uma nova direção municipal, é um mistério. Enquanto isso, continuamos vivendo à sombra do que um dia foi esse evento de referência mundial.

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