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Livros América Latina

Cotado para o Nobel, César Aira traz 'novelitas' inclassificáveis ao Brasil

Obras transgressoras e bem-humoradas do argentino passam por onda de reconhecimento que o eleva a patamar além do cult

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Fernanda Lobo

É editora e tradutora, mestre em literatura latino-americana e doutoranda em estudos literários pela Universidade Federal de Minas Gerais

Não é de hoje, dois procedimentos muito criticados na literatura são a repetição de fórmulas e o "bom mocismo". Contrária a esses caminhos mais fáceis e, portanto, comuns, a literatura de César Aira não obedece a fórmulas, tampouco discute explicitamente a política por um viés pedagógico.

Homem branco de barba grisalha e óculos deitado em um banco com as pernas esticadas dentro de uma sala com uma estante cheia de livros ao fundo
O argentino César Aira, autor prolífico de obras inclassificáveis - Alejandra López/Divulgação

Talvez por isso quem lê César Aira há mais tempo tenha se impressionado com a onda de reconhecimento institucional de sua obra, que foi considerada, por muito tempo, destinada a um nicho de leitores cult. A coisa tem descambado até a cotação de seu nome para o Nobel de Literatura nos últimos anos.

A surpresa vem do fato de que Aira escreve como quem rejeita até a ideia de "boa literatura". Não apenas no sentido de ser um escritor marginal, mas como quem "troca os sinais" das hierarquias literárias, dando, ao mesmo tempo, muitas provas de conhecer bem esses sinais.

Em um bom momento para o autor, chegam ao Brasil quatro de suas "novelitas" que, completamente diferentes entre si, apresentam Aira como é: inapreensível.

"A Prova", "Atos de Caridade", "O Congresso de Literatura" e "O Vestido Rosa" nem parecem saídos da mesma caneta à primeira vista, mas compartilham uma transgressão sofisticada e bem-humorada. São quatro narrativas curtas, como a maior parte de seus muitos livros que variam, sem muita cerimônia, entre filosofia densa e nonsense deliberado, de modo que o próprio leitor se pergunta se o autor está falando sério ou se está de brincadeira. É esse efeito que faz de seus livros experiências vivas.

Perspicaz, Aira não quer ensinar nada, a não ser a diversão de imaginar em linguagem literária. Não existem saltos evolutivos ou arcos de aprendizagem, apenas devaneios que vão longe demais, mas não chegam a entediar porque Aira sabe o que está fazendo. E, embora não se dirija explicitamente à política, fica claro que não se trata de nenhum desavisado formalista.

Capas das 'novelitas' do argentino César Aira que saem pela Fósforo
Capas das 'novelitas' do argentino César Aira que saem pela Fósforo - Divulgação

Em "A Prova", uma narrativa cyberpunk em que duas garotas tentam convencer uma terceira que passa pela rua a transar com elas, o leitor pode enxergar uma alegoria irônica (até porque uma das meninas se chama Lênin e a outra, Mao), mas não deixa de se impressionar com os rumos que a narrativa toma em caráter expansivo, embora exista uma cronologia linear.

Depois de um diálogo longo e cheio de momentos filosóficos dentro de um fast-food, as garotas cansadas partem para dar uma prova de amor à terceira. E o fazem em um supermercado de outra rede argentina famosa. Elementos da contemporaneidade mais chã se misturam com reflexões eruditas.

"Atos de Caridade" narra os dilemas de um sacerdote da Igreja Católica em torno da caridade, em que fica claro que seu interesse está em viver uma vida luxuosa, embora muitas cambalhotas discursivas tentem justificar essa escolha.

Apaziguando, de tempos em tempos, a própria consciência, o padre opta por construir para si uma casa tão portentosa que não obrigaria a nenhum ato de prescindência, pois, na dúvida se construiriaa uma biblioteca pequena ou uma grande, por exemplo, o protagonista mandava fazer as duas. A atitude rende alguma crise de consciência, "pois Satanás opera justo com essas armas: com a irrupção sorrateira das possibilidades na realidade". Mas rende ao leitor uma "novelita" prazerosa.

"O Congresso de Literatura", um de seus textos mais famosos, é narrado pelo próprio autor, que vai a um encontro na Venezuela e, com um desenrolar meio de ficção científica, tenta produzir um exército de clones do escritor Carlos Fuentes, cuja obra é um dos pilares do "boom" latino-americano, para dominar o mundo.

"A primeira parte da operação, a que mais exigia de mim, estava cumprida: conseguira uma célula de Carlos Fuentes, depositara-a no clonador, o qual permaneceu funcionando em condições ótimas." Uma galhofa inacreditável.

"O Vestido Rosa" é inspirado em um conto de Guimarães Rosa, "O Recado do Morro". Aira é um grande entusiasta da literatura brasileira, que considera melhor do que a argentina.

É a história de um vestidinho que seria dado de presente a uma recém-nascida. O encarregado de levá-lo é um bobo chamado Asís. O pacote é roubado no caminho e o vestido rosa passa pelas mãos de "índios", soldados do general Roca, gauchos, vaqueiros. Muitos anos depois, o vestido chega às mãos de Asís, já em uma situação muito diferente.

Talvez o sucesso recente de Aira se deva a um esgotamento da obsessão dos leitores pela experiência individual, já que, aqui, a imaginação vem antes da representação.

A Prova

  • Preço R$ 44,90 (152 págs.)
  • Autoria César Aira
  • Editora Fósforo
  • Tradução Joca Wolff e Paloma Vidal

Atos de Caridade

  • Preço R$ 39,90 (88 págs.)
  • Autoria César Aira
  • Editora Fósforo
  • Tradução Joca Wolff e Paloma Vidal

O Congresso de Literatura

  • Preço R$ 44,90 (168 págs.)
  • Autoria César Aira
  • Editora Fósforo
  • Tradução Joca Wolff e Paloma Vidal

O Vestido Rosa

  • Preço R$ 44,90 (144 págs.)
  • Autoria César Aira
  • Tradução Joca Wolff e Paloma Vidal
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