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Silas Martí

Madonna fez do verde e amarelo um símbolo de trégua e prazer no Rio

Show apoteótico não curou feridas do Brasil dividido, mas o pôs em suspensão, como uma pátria menos armada e mais sonhada

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Silas Marti

Está na Folha desde 2007, onde foi repórter de artes visuais e correspondente em Nova York. É editor da Ilustrada e do núcleo de Cultura do jornal. Formado em jornalismo, especializado em crítica de arte e mercado de arte contemporânea com mestrado em arquitetura e urbanismo na Universidade de São Paulo. Venceu também a bolsa Knight-Wallace, da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos.

É dura a ressaca. Difícil dessintonizar da febre que viveu o Rio de Janeiro esses dias em torno de Madonna em Copacabana. No rádio, na praia, nos bares, nas ruas, no aeroporto, só a voz dela nos alto-falantes, a trilha sonora hedonista do balneário mais vistoso do mundo.

Uma imagem que fica do show, no entanto, tem mais camadas. Madonna se vestiu de verde e amarelo, agitou a bandeira do Brasil e levou uma batucada para dentro de sua "Music", um dos pontos altos da apresentação. Fez isso ao lado de Pabllo Vittar, a drag mais famosa do país.

Pabllo Vittar e Madonna em show em Copacabana
Pabllo Vittar e Madonna em show em Copacabana - Reprodução

Nas redes, logo vieram comemorações e memes. A rainha do pop teria resgatado as cores da bandeira para todos, não só bolsonaristas roxos ou golpistas de plantão. Todos nós somos verde e amarelo de novo.

A multidão de todas as cores e sexualidades abarrotando a praia de Copacabana é toda verde e amarelo também, unida, como lembrou a diva, entre o mar e as montanhas e debaixo dos braços de Cristo no alto do Corcovado.

O espetáculo de Madonna não foi nada menos que isso, uma explosão furiosa de alegria, descompressão, deslumbramento. Não penso que cura as feridas e fissuras de um país dividido, rachado ao meio, como disseram uns e outros, mas abre um intervalo, um estado de suspensão, como se pedisse uma trégua, um respiro para que se possa celebrar, como ela canta em "Holiday".

Muitos vão se perguntar. Celebrar o que no estado atual das coisas? A música de Madonna se ancora nessas alegrias simples, banais, mas que dão estofo à vida —amores, passageiros ou não, amigos, sexo, de todos os jeitos e com todas as pessoas, festas.

Enrolada na bandeira do Brasil, Madonna diz que o país ainda é e pode ser o território do prazer, de orgasmos múltiplos em harmonia entre todos. A simulação de um beijo grego com uma drag em cima do palco e o beijo de língua real numa bailarina não poderiam ser mais explícitos em relação a esse desejo de celebrar o amor em toda a sua multiplicidade.

Se sua mensagem é universal, direto da areia da praia da terra das celebridades, socialites e milícias, Madonna também lembrou um poeta daqui que, como ela, festejou o amor, mas não deixou de enfiar o dedo nas feridas do país. Impossível não se lembrar de "Brasil" ao ver Cazuza no telão.

Ele queria ver a cara do Brasil, saber quem paga para a gente ficar assim. Qual é o teu negócio, o nome do teu sócio?

Outro gigante das nossas letras, Caio Fernando Abreu pôs em palavras elegantes o óbvio. Num relato da primeira passagem de Madonna pelo país, na década de 1990, ele escreveu que ela representa "tudo aquilo que gostaríamos de ser e ter", no caso, "o prazer sem culpa". "Madonna faz no palco tudo aquilo que as pessoas (as saudáveis) fazem na cabeça."

Mais de três décadas depois, num mundo que parece não ter mudado tanto, Madonna segue dando lições. Desta vez, juntou drags, pretos e crias de favela no palco num ato de descarrego, convocando no embalo a bandeira nacional ao posto de símbolo de todos, outra pátria, menos armada e amada, mais sonhada, nem que impulsionada pela alegria passageira de um show, só um show apoteótico.

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