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Filmes

Anouk Aimée mostrou para o mundo o que é o amor à moda francesa

Atriz morta nesta terça-feira foi um arquétipo da mulher dos anos 1960 que toda uma geração feminina aspirava a ser

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No imaginário geral, Anouk Aimée será sempre a Anne de "Um Homem, Uma Mulher", de 1966. Em outras palavras —fundamentalmente uma mulher belíssima, sofisticada, moderna, intelectualmente admirável. Mas também capaz de se entregar com ardor a uma paixão, mesmo sofrer por ela, sem contudo perder sua elegância e o controle sobre si.

De certo modo, a atriz morta nesta terça-feira era um arquétipo de mulher dos anos 1960, que toda uma geração feminina aspirava a ser — ao menos as que pertenciam a uma certa elite intelectual, que achavam mais interessante ter por modelo sua figura discreta do que a da mulher carnal, que jamais passava despercebida dos olhares desejosos masculinos, como Brigitte Bardot. Ou a da amante meio fatal, de poder não raro destrutivo sobre os homens com quem ia para a cama, encarnada por Jeanne Moreau.

Central Press - 8.ago.1970/AFP
Anouk Aimée e o ator Albert Finney na cerimônia de seu casamento - -/AFP

Nesse sentido, Aimée era uma figura com mais proximidade à de Catherine Deneuve, delicada e algo gélida – um objeto cinematográfico menos material, mais etéreo. Mas sua beleza era diferente mesmo entre as francesas.

Ao mesmo tempo em que os olhos e cabelos negros, o nariz levemente pronunciado, lhe davam um aspecto mais latino, talvez árabe, ela tinha uma palidez e uma constituição física delgada que lhe imprimiam uma frieza quase nórdica. Embora houvesse em sua figura um aspecto por demais melancólico, com uma irremediável propensão à tristeza —e, nesse ponto, talvez ela se aproximasse mais de uma Capucine.

Mas Aimée teve uma trajetória bastante própria no cinema. Nascida em Paris em 1932, deu os primeiros passos na arte que a consagrou nos anos 1940, ainda adolescente. Foi por essa época que Jacques Prévert, encantado com sua figura, teria lhe dado a ideia de incluir "aimée", amada em francês, ao nome artístico, que inicialmente era apenas Anouk, referência a sua personagem em um dos primeiros filmes.

Costumava interpretar mulheres sofridas e frágeis, em filmes de nomes importantes do cinema francês, como André Cayatte, Alexandre Astruc, Jacques Becker e Georges Franju. Mas foi na Itália que ela daria uma primeira virada em sua carreira, atuando em dois longas de Federico Fellini —"A Doce Vida", de 1960, e "Oito e Meio", de 1963.

Neste último, fez um de seus papeis mais lembrados —Luísa, a mulher do cineasta vivido por Marcello Mastroianni, que precisava aturar infidelidades que faziam parte de seu processo artístico. Também ali ela vivia uma mulher sofrida, mas apresentada sob uma ótica autoral e idealizada —mais do que a mulher traída, era a do porto seguro, de onde um homem consegue sua força nas horas de crise, um tipo de personagem que, hoje, provavelmente não seria tão bem aceito.

Foi depois de ver os dois filmes fellinianos que o atorJean-Louis Trintignant deu a ideia ao cineasta Claude Lelouch para chamá-la para "Um Homem, Uma Mulher", e o resto é história. Um estrondoso sucesso mundial, Palma de Ouro em Cannes, que ajudou a inclusive firmar a imagem do Brasil enquanto berço de música boa, nos trechos em que a personagem de Aimée relembra um romance movido a uma versão em francês de "Samba da Bênção", cantada por Pierre Barouh. Aimée foi até indicada para o Oscar de melhor atriz, na primeira vez que uma francesa concorria em um longa falado na sua língua de origem.

Mas na memória de um público mais ferrenhamente cinéfilo, talvez seu papel mais marcante tenha sido o da prostituta Lola, de "Lola, a Flor Proibida", de 1961, filme cultuado de Jacques Demy. Jamais ela teve —e teria— tanta vivacidade em cena. Quando sua personagem canta e se apresenta na música "C’est Moi, C’est Lola" com muito charme e certa displicência, a atriz imortalizava a si e ao filme em um dos trechos mais definidores dos princípios do cinema da nouvelle vague feito na época.

Seu sucesso faria Demy levar a personagem a outro longa —uma década mais tarde, Lola reviveria no hoje cult "Model Shop", de 1969, filmado em Los Angeles.

Que não foi, aliás, a única experiência da atriz nos Estados Unidos, mas o tipo de mulher que Aimée encarnava talvez fosse excessivamente europeu para ela emplacar uma carreira sólida em Hollywood. Reza a lenda que George Cukor, que a dirigiu em "Justine", de 1969, um grande fracasso, não se entendeu com seu método e reclamou de não conseguir extrair emoção alguma da atriz. Irritou-se com sua indiferença. Que fazia parte de seu charme.

A vida pessoal de Aimée foi provavelmente bastante rica, incluindo romances com Warren Beatty e Omar Shariff, mas ela nunca rendeu grandes materiais para tabloides. Casou-se de papel passado pela quarta e última vez com o também ator Albert Finney, na década de 1970, um período em que praticamente sumiu das telas.

Voltou em grande estilo em 1980, com direito a um prêmio de melhor atriz em Cannes, pela mulher emocionalmente perturbada de "Salto nel Vuoto", de Marco Bellocchio, contracenando no ano seguinte com Ugo Tognazzi, em "A Tragédia de um Homem Ridículo", de 1981, de Bernardo Bertolucci. Mas os tempos áureos já estavam no passado.

Em 1986, voltou a encontrar Lelouch e Tringtignant na continuação "Um Homem, Uma Mulher: 20 Anos Depois", e o trio retornaria ainda a um derradeiro encontro em "Os Melhores Anos de uma Vida", de 2019.

Seria o canto dos cisnes tanto de Tringtignant quanto de Aimée, e uma maneira tocante de encerrar as trajetórias das duas figuras que, talvez mais do que quaisquer outros, mostraram para o mundo o que é o amor à moda francesa.

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