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'O Mel É Mais Doce que o Sangue' defende a arte ancestral e de invenção

André Guerreiro Lopes parte da poesia de Federico García Lorca para refletir a resistência pela arte no Brasil de Jair Bolsonaro

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O Mel É Mais Doce que o Sangue

  • Quando Ter. (4), às 20h30
  • Onde Cinesesc - r. Augusta, 2075, São Paulo
  • Classificação 14 anos
  • Elenco Helena Ignez, Djin Sganzerla, Michele Matalon
  • Produção Brasil, 2023
  • Direção André Guerreiro Lopes

Em seu novo trabalho, André Guerreiro Lopes troca a eternidade do teatro pela fugacidade do cinema. Mas traz para o cinema muito de seu trabalho teatral, já notado e notado. E também a poesia, já que o filme é diretamente inspirado pelas palavras de Federico García Lorca.

"O Mel É Mais Doce que o Sangue", que será exibido em sessão especial no Cinesesc nesta terça-feira, começa por afirmar a força da imagem —vemos um cubo mágico, com uma esfera no centro, cujo equilíbrio é rompido pelo braço que a invade.

Cena do filme 'O Mel É Mais Doce que o Sangue', de André Guerreiro Lopes
A atriz Helena Ignez em cena do filme 'O Mel É Mais Doce que o Sangue', de André Guerreiro Lopes - Divulgação

Da mesma forma, logo a seguir, uma mulher, papel de Helena Ignez, uma indígena branca, começa a arrastar cidade afora uma enorme traquitana que tem um quê de câmera, outro tanto de projetor, ou de ferro-velho perdido e juntado para fabricar esse objeto estranho.

É um pouco dentro dessa máquina que muitas coisas se passam —ou se deixam ver. Ali, pessoas encostam o olho para ver coisas inesperadas, incríveis. Ali também aparece, grande, o olho do espectador, o "cine-olho".

Essa mulher sai da floresta, da natureza, e de certo modo busca afirmar tudo isso. É o lado "zen" de Lopes que aparece —a água, as árvores, o voo das aves. A base de tudo, enfim.

De uma base, o filme pula para outra —os indígenas. Primeiro na cidade que parece um paliteiro, com seus infinitos arranha-céus, depois em uma aldeia, os indígenas não precisam fazer nada, exceto cantar e dançar para sabermos que são eles os guardiões da natureza, ou até a esperança final da natureza, do ponto de vista do filme.

É bom convir que esse é um filme feito durante a pandemia, portanto durante o governo Bolsonaro, em que a extinção dos indígenas era uma intenção enunciada pelo seu líder com meias palavras quase inteiras.

O propósito inicial, portanto, faz encontrar a natureza e a resistência —a sobrevivência, em suma. A poesia de Lorca, aliás, é de conflito. Suave, mas de conflito. Um pouco como o filme até certo ponto. Também não é poesia de paz, porque os tempos em que viveu e foi assassinado também não eram.

O "zen" de Lopes cede um tanto ao tom guerreiro de "Titus/Macbeth", tragédia sobre tragédia em que não raro o sangue é, senão mais doce, mais saboroso do que o mel, e a destruição do outro mais desejável que
qualquer outra coisa.

Uma montagem que aconteceu logo antes da pandemia, no centro do governo anterior, portanto, no centro do "viva la muerte" e de certo modo precede as cenas em locais de prisões e execuções políticas (ou mais abertamente políticas que o habitual).

Nesse crescendo, o desejo de preservação e resistência deriva para um prenúncio de tragédia. Lá está, registrado, a mulher do início andando na contramão de uma manifestação verde e amarela.

O ímpeto experimental não se perde, nem o poético, embora possa lembrar aqueles filmes do começo dos anos 1970, dos filmes "marginais" e seu espírito inventivo.

Aqui, no entanto, não estamos na margem. A política, a poética, o teatro, o cinema, mel e sangue, tudo surge discriminado e, no entanto, tudo cabe dentro da traquitana que carrega a mulher, como se ali estivessem séculos de existência, cinco séculos ou mais —da floresta e suas formigas às avenidas marginais cheias de asfalto e movimento.

Aqui parece claro que o filme aponta não tanto para a política, para o imediato, mas para a cultura. A assustadora cena da mulher marchando na contracorrente da manifestação verde e amarela (Plínio Salgado vive!) serve para lembrar, mais do que a escultura-homenagem a Lorca, a guerra cultural em que este filme se insere com força, como a reivindicar que a cultura só pode ser derrotada pela arte, seja a dos
ancestrais mestres da natureza, seja pela invenção.

A cultura tenta matar a exceção que resiste a ela, a arte —disse Godard. Mas também é possível pensar de outro modo. A arte pode, sutilmente, enfrentar a cultura. Especialmente a cultura do sangue. Aquelas aplicadas formigas que carregam fragmentos de grama para um mesmo lugar podem ser uma metáfora desse trabalho penoso dos minúsculos trabalhadores da invenção contra um mundo enorme e hostil.

É preciso lembrar, no entanto, que boa parte das palavras de Lorca se perde, talvez por efeito da mixagem, talvez pelo tom baixo das frases. Não seria absurdo exibir o filme com legendas em português.

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