Helena Ignez reafirma sua liberdade aos 83 em filme sobre poder do orgasmo

Atriz lendária do cinema brasileiro, ela vive sexóloga roqueira em novo longa como diretora

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Claudio Leal

Jornalista e mestre em teoria e história do cinema pela USP

[RESUMO] Livre, moderna e criativa, Helena Ignez é figura central de projetos de Glauber Rocha, Rogério Sganzerla e Julio Bressane, principais nomes do cinema nacional de invenção. A atriz baiana, que foi casada com Glauber e companheira de Sganzerla, virou diretora e inventou seu próprio cinema nos anos 2000. Em "A Alegria É a Prova dos Nove", seu novo longa, vive uma sexóloga, artista e roqueira octogenária, em um roteiro que aborda a sexualidade feminina, a cultura underground, a diversidade de gêneros e os efeitos benéficos da maconha.

O jardim suspenso de Helena Ignez floresce na varanda de seu apartamento, no centro de São Paulo, e a protege da paisagem diabólica de um prédio em construção. O barulho metálico das obras, no entanto, atravessa a folhagem. "Olhe lá, nasceram duas orquídeas", aponta a atriz e diretora. São roxas e crescem com desleixo nos caules. "Que planta é essa?", pergunta ao escritor Gil Veloso, seu amigo, que palpita: "Parece gerânio, com folhas aveludadas".

Ela repousa depois de ver a peça "Prazer, Hamlet", de Ciro Barcelos, e caminhar do teatro Itália Bandeirantes até a região da praça Roosevelt. Perto de casa, na avenida Ipiranga, ouviu o longo pedido de esmola de um morador de rua. "Na Índia, aprendi que devemos sempre dar atenção a um mendigo. Pode ser um mestre disfarçado", explicou.

A atriz Helena Ignez em seu apartamento em São Paulo, no final de 2022
A atriz Helena Ignez em seu apartamento em São Paulo, no final de 2022 - Rodrigo Sombra/Divulgação

"Você continua a mesma. Quando morava comigo você acordava, tomava guaraná em pó, fazia tai chi e fumava", recordou Veloso, na esquina da Consolação. "Só não posso mais fumar", lamentou Helena, ainda fiel à cânabis.

Nessa noite, em outubro de 2022, ela estava na fase de montagem do longa "A Alegria É a Prova dos Nove", apresentado três meses mais tarde na 26ª Mostra de Cinema de Tiradentes, mas ainda sem previsão de estreia no circuito comercial. "É meu filme mais revolucionário."

Além de assinar a direção, Helena vive a personagem da sexóloga, artista e roqueira octogenária Jarda Ícone, amiga e amante de Lírio Terron, defensor dos direitos humanos, interpretado pelo cantor Ney Matogrosso. Eles relembram fragmentos de uma viagem ao Marrocos saariano, em 1977.

Na órbita de Jarda estão a sexualidade feminina, a cultura underground, a diversidade de gêneros e os efeitos benéficos da maconha. A miragem de um "orgasmo total" permeia o prazer das mulheres e merece uma longa sequência ritualística. Helena surge de seios nus. No fim da sessão em Tiradentes, Ney Matogrosso cochichou em seu ouvido: "Você é corajosa, hein, minha filha?".

O elenco tem ainda Djin Sganzerla, filha da diretora, Vera Valdez, Mário Bortolotto, Guilherme Leme e Michele Matalon, entre outros. "Helena é uma locomotiva em permanente estado de ebulição", define Matalon, também produtora.

Casada com Glauber Rocha de 1959 a 1961 e companheira de Rogério Sganzerla de 1968 a 2004, a baiana Helena Ignez protagonizou o primeiro filme do líder do cinema novo, o curta "O Pátio" (1959), e outros nove do expoente do cinema marginal —uma parceria iniciada com "O Bandido da Luz Vermelha" (1968).

A cumplicidade de Helena e Glauber se partiu na separação e não ganhou desdobramentos artísticos. Com o baiano, ela teve a filha Paloma, cineasta. Da união com o cineasta catarinense, nasceram Sinai, diretora, e Djin, atriz.

No final do nosso encontro, Helena assumiu um tom direto na observação de sua vida. "Meus dois ex-maridos, Glauber e Rogério, morreram pelo cinema. Eu não morrerei pelo cinema. Não quero", afirmou, invadida pela melancolia. "Eu sinto remorso. Se não fosse por mim, eles seriam grandes aliados, irmãos no cinema. Rogério era apaixonadíssimo por Glauber. E Glauber, quando veio a São Paulo, procurou quem? Rogério, que tinha somente 17 anos e já escrevia em jornal."

Ela descreveu a criação de sua coreografia no piso xadrez de "O Pátio", lembrou seus filmes dos anos 1960, mas logo ficou reflexiva e interrompeu as memórias. "Talvez a vida seja inútil. Pra que tudo isso? Só vejo sentido no agora, agora e agora."

A água de seu chá fervia na cozinha. No apartamento comprado em 2002, ao se mudar do Rio para São Paulo, ela instalou o escritório de sua produtora Mercúrio. Não mora mais sozinha. Desfruta de um aparelho da assistente virtual Alexa, a quem pede canções e favores. "Alexa, qual a novidade?", indagou em 29 de dezembro. "Hoje morreu Pelé", informou o robô. Helena ficou em lágrimas.

A aliança de Helena Ignez com o cinema de invenção tem uma densidade rara entre os seus colegas geracionais, se pensarmos no vaivém de atores do cinema novo e da "nouvelle vague" entre os filmes de vanguarda e aqueles mais convencionais. A opção pela radicalidade a transforma em uma atriz que define, em suas performances, mais do que um estilo pessoal, o espírito de correntes estéticas. Ela lançou mão dos teatros clássico e moderno, do cinema novo e do marginal, de Brecht e de Stanislavski.

Se não for a mais importante atriz viva do cinema brasileiro, não resta dúvida de que se firmou como a mais livre e moderna. Helena não vestiu as plumas de "grama dama", golpeou a própria beleza na tela e, dando de ombros para a fama nos anos 1970, suspendeu sua carreira de atriz por seis anos para desbundar no Rio e na Bahia. Fora de cena, entrou no movimento hare krishna, ensinou tai chi, aprendeu a ler as linhas das mãos e assimilou o budismo.

A atriz está no coração dos projetos de Glauber, Sganzerla e Julio Bressane, os nomes centrais do cinema nacional de invenção. A Mariana de "O Padre e a Moça", de 1966, de Joaquim Pedro de Andrade, não tem parentesco com a Janete Jane de "O Bandido da Luz Vermelha", e esta chega a ser uma prima mais comedida da Ângela Carne e Osso de "A Mulher de Todos" (1969). Ela fez estes dois últimos filmes com Sganzerla, e era nítido seu voo para uma representação com violência estilística. Em 2019, "Tragam-me a Cabeça de Carmen M.", de Felipe Bragança e Catarina Wallenstein, marcou a renovação de seu mito entre jovens diretores.

Com a morte de Sganzerla, Helena temeu o declínio dos filmes transgressores e, por prudência, inventou um cinema para si mesma, estreando na direção de longas com "Canção de Baal" (2007). De Sganzerla, ela filmou ainda os roteiros inéditos "Luz nas Trevas – A Volta do Bandido da Luz Vermelha" (2012), um retorno ao clássico do cinema marginal, e "A Moça do Calendário" (2018), mas sempre reescrevendo os textos originais, para aproximá-los de sua visão feminina.

"Eu vi que, como ator, não ia dar. Rogério tinha morrido. Com a morte dele, eu disse: não tem jeito", lembra Helena. "Enquanto não for o diretor do seu próprio trabalho, a gente não pode participar de todas as etapas, mas dentro desse pequeno núcleo você pode, sim, ter uma satisfação de estar vivendo o completo. O ator sabe que não é o senhor de um filme."

Em uma segunda visita à sua casa, ela recorda que a inspiração do título de seu novo filme veio de uma entrevista do escritor e líder indígena Ailton Krenak no programa Roda Viva, em abril de 2021. O músico e ensaísta José Miguel Wisnik observou que Krenak preservava a alegria de viver ao abordar temas ambientais angustiantes. "Wisnik, você sabe muito bem que a alegria é a prova dos nove", respondeu Krenak, citando o Oswald de Andrade do "Manifesto Antropófago".

Helena se emocionou em ver Oswald sendo citado por Krenak na televisão. "Eu achei magnífico. Isso é a antropofagia", ela diz. "Quando eu conheci Rogério, já com 28 anos, e ele com 21, ele era um profundo conhecedor de Oswald, enquanto a geração dele e a intelectualidade se voltavam mais para Mário de Andrade. O que me fez escolher Oswald pra ser a inspiração vem de Rogério, um irmão intelectual dele pelo chiste."

"A Alegria", Helena acrescenta, "é um filme totalmente marítimo, ligado ao mar, e desde o princípio conceitual. Tem um momento de olhar pra câmera e dizer ‘tchau, cultura’. Uma coisa bem underground". Sob influência da sexóloga americana Betty Dodson, sua personagem vira uma "xamã do prazer feminino" com o programa online "Orgasmo como Fonte do Autoconhecimento", no qual apresenta técnicas de masturbação. Suas vivências completam o quadro de rebeldia.

A atriz Helena Ignez em foto de 1964 - Acervo UH/Folhapress

"Com Glauber eu conheci pela primeira vez uma pessoa como eu mesma, mas nós não tínhamos conexão sexual. Não sabíamos nada sobre sexo. E eu nunca tive um orgasmo com ele", afirma Helena. "Glauber tinha 18 anos, e eu também. Tinha uma menina, uma prostituta, preta, do Pelourinho, que ele visitava. Logo que começou o namoro ele falou que tinha essa menina, que ela era muito limpa e gostaria que ela me conhecesse. Ela foi linda. Levou um ramo de flores pra mim."

Em Salvador, onde nasceu em 23 de maio de 1939, Helena despontou na geração de atores formados pela Escola de Teatro da Bahia. Antes disso, seu amor ao ofício se acendeu numa viagem familiar a São Paulo, nos anos 1950. Ela viu então Cacilda Becker em "Pega-Fogo" (também traduzido como "Pinga-Fogo"), do francês Jules Renard, sob direção de Ziembinski, no TBC.

"Fiquei impressionada. Como é que uma mulher daquela, muito mais velha que eu, fazia um menino? Logo que eu soube da Escola de Teatro da Bahia me inscrevi. E aí tive dois grandes influenciadores. Martim Gonçalves, através do método de Stanislavski, e Domitila do Amaral, a maior atriz que eu vi na minha vida, também com o estilo stanislavskiano."

"Vejo Stanislavski muito deformado. Stanislavski é você, mas não é Narciso. É outro processo. E quem lhe ajuda a entender esse processo? Brecht. Ele vai entender que o ator está aqui e está aqui se vendo, mas é um só, com toda aquela consciência do tai chi chuan. É por aí que eu faço."

Em setembro de 1960, numa montagem de "A História de Tobias e Sara", de Paul Claudel, a atuação de Helena Ignez enlevou os irmãos Maria Bethânia e Caetano Veloso. Uma fala da atriz —"eu sou a romã!"— seria repetida dias seguidos pelos jovens fãs. "Nunca pensei que um dia eu fosse perguntada sobre ela. Porque Helena, além de ser a romã, é pura luz", elogia Bethânia.

"Uma mulher de uma entrega naquele teatro extraordinário dirigido por Martim Gonçalves, naquela escola de grandes atores. E ela era de uma beleza fora do comum, como jamais vi. Uma entrega corporal, uma entrega vocal, uma entrega total àquele personagem que era tão encantador. Pelo menos me tocou de uma maneira muito profunda e inesquecível. Helena Ignez foi, é e será para sempre uma estrela-guia", diz a cantora baiana, que aceitou falar da atriz durante sua temporada de verão entre Salvador e Santo Amaro.

"Glauber e Helena foram um acontecimento na Bahia, como foi dona Lina Bardi. Era uma vitória vê-los juntos", afirma. "Eles quebravam a Bahia. Mas quebravam a Bahia da maneira mais espetacular e mais poética e mais deslumbrante. Eram lindos fisicamente. Eram lindos juntos namorando. Eram lindos com seus personagens. Tudo o que eu pude ver aqui ainda, antes de ir me embora trabalhar, aos 17 anos, pude ver na Escola de Teatro da Bahia."

O desempenho de Helena na peça de Claudel, revela Bethânia, pode ter influído em sua decisão de ser cantora. "Helena me toca profundamente. Talvez tenha sido ali que tenha nascido em mim o desejo de interpretar, de cantar, de me expressar de alguma maneira. Helena é guia."

A atriz cresceu nos anos de afirmação cinéfila do cinema moderno europeu. Entretanto, tem dívidas profundas com o cinema americano e acentua a influência de "Quanto Mais Quente Melhor" (1959), de Billy Wilder. "Marilyn Monroe foi um impacto pra mim, e se renova até hoje. Vou lhe dizer: é puramente artístico. Aquele olhar com aquela voz. Qualquer um que tenha olhos livres vai ver que é um gênio. Perfeita."

Na década de 1960, o fim do casamento com Glauber influiu em seu afastamento gradual do círculo do cinema novo. "Essa dissidência foi especificamente ter sido casada com Glauber, abandonado ele num escândalo e ele ter tomado até a própria filha (Paloma) pra se vingar", ela resume. "Eu ia fazer ‘A Ira dos Deuses’, que era o nome de ‘Deus e o Diabo na Terra do Sol’. Eu ia fazer o papel para o qual Yoná Magalhães foi chamada depois pelo produtor. Então, seria extraordinário. Fiquei com aquilo dentro de mim até hoje. Quando eu atuo, digo: ‘Ai, não fiz 'Deus e o Diabo'."

O livro de Pedro Guimarães e Sandro de Oliveira, "Helena Ignez: Atriz Experimental" (Edições Sesc, 232 págs., R$ 65), destaca a autoralidade de suas performances. Helena não foi apenas dirigida. Julio Bressane e Rogério Sganzerla reconheceram a coragem e a inventividade de suas criações.

"Rogério era uma pessoa muito especial. Com todo o meu feminismo sincero, reivindicatório, tenho que agradecer muito a ele por uma formação intelectual que eu prezo profundamente. Até a religião tem que vir pra mim através do pensamento, do intelecto, da cultura", observa Helena. "Julio é muito estudioso. Eu percebi o que ele queria. Ele adora um desregramento dos sentidos, uma doença psíquica, narcísica e também social, meio deformada. Julio faz psicanálise desde menino. É profundamente psicanalisado."

Bressane trabalhou com Helena em "Cara a Cara", de 1967, "Cuidado, Madame", "Barão Olavo, o Horrível" e "A Família do Barulho", os três últimos de 1970, na fase da Belair, produtora de filmes de essência anticomercial. "Antes da Belair, Helena fez com Rogério filmes geniais, ‘O Bandido’ e ‘A Mulher de Todos’. Ela inventou uma maneira de representar nos dois filmes, com um talento, um humor, uma graça e uma beleza que até aquele momento não existiam no cinema brasileiro", analisa Julio Bressane.

Na breve Belair, o inconsciente aflorou em seu estilo de expressões irracionais e assombro plástico, como na cena de "Família do Barulho" em que o sangue escorre de sua boca. "Helena experimentou e inventou uma nova maneira de atuar, não de trazer coisas daqui ou dali, de seu gesto, de seu clichê já trabalhado. Não. Ela inventou. Sobretudo em ‘Barão Olavo’, que foi um ponto de inflexão. É um momento culminante dela de representação", comenta Bressane, que voltou a dirigi-la em "São Jerônimo", de 1999.

"Em todo o trabalho ela tinha uma observação de como aquilo era feito. Seja no teatro, seja na fotografia, seja no cinema. Daí ela começou a dirigir filmes excelentes. Todos tão bons quanto ela como atriz, de um experimento novo entre nós, dentro de uma sensibilidade feminina totalmente nova."

Helena enfrenta um enigma. De volta à varanda, lembrada sobre sua afirmação de que o sentido da existência se impõe no agora, ela se surpreende e até duvida da autoria da própria frase. "Pô, eu estava sábia quando falei isso! Gostei. Vou me citar. Só existe o agora, se você for filosofar. E daí você pode ter vários pensamentos diversos sobre várias coisas, como, por exemplo, a morte. Pensei hoje de tarde. Eu acho que a morte é uma vida diferente. Como é? Não tenho a menor ideia."

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