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Natalia Ginzburg explora brigas nascidas de cartas em seu último romance

'A Cidade e a Casa' mergulha com paciência no dia a dia de pessoas comuns, no grande trunfo da escritora italiana

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Kelvin Falcão Klein

Professor de literatura comparada da Unirio

A Cidade e a Casa

  • Preço R$ 79,90 (304 págs.); R$ 39,90 (ebook)
  • Autoria Natalia Ginzburg
  • Editora Companhia das Letras
  • Tradução Iara Machado Pinheiro

Publicado originalmente em 1984, "A Cidade e a Casa" é o último romance da escritora italiana Natalia Ginzburg, que morreu poucos anos depois, em 1991.

Recém-editado no Brasil, este livro retoma as cenas domésticas e as relações familiares recorrentes na obra de Ginzburg, especialmente em romances como "Léxico Familiar", de 1963, e nos escritos autobiográficos de "Não me Pergunte Jamais".

idosa branca diante de parede em fotografia PB
A escritora italiana Natalia Ginzburg em retrato feito em Roma em 1989, quando ela tinha 73 anos - Francesco Gattoni/Divulgação

A autora resgata a forma epistolar que já havia utilizado no romance "Caro Michele", de 1973, mas agora de forma mais homogênea.

Naquele, as cartas são o veículo principal da história, contrabalançadas por uma narração em terceira pessoa que movimenta os personagens no tempo e no espaço. "A Cidade e a Casa", por sua vez, é um romance sustentado inteiramente pela troca de cartas de um grupo de amigos e parentes vivendo na Itália —e um deles nos Estados Unidos— na passagem da década de 1970 para a de 1980.

O primeiro evento de peso é a mudança de Giuseppe, que deixa Roma para se estabelecer em Princeton, onde mora seu irmão mais velho. É essa distância que justifica, inicialmente, a troca de cartas, dando início a uma rede de ecos e vozes que se afastam, pouco a pouco, da cena inaugural.

O nível mais imediato da narrativa diz respeito às movimentações cotidianas —trocas de endereço, nascimento de crianças, divórcios e casamentos, novos empregos: "A Nadia amamentava a menina, enquanto conversavam, e Alberico e Salvatore debulhavam feijões. Era um pequeno retrato familiar de grande serenidade".

Não demora, contudo, para que apareçam as rusgas e os desentendimentos típicos da comunicação opaca das cartas, algo que frequentemente contribui para o aumento da correspondência: "Você está prestes a fazer uma grande idiotice, Albina. Deixe para lá. Deixe tudo para lá, a roupa de gabardina azul, a loja, o café com leite, o pátio".

À semelhança de clássicos do gênero como "As Relações Perigosas", de Choderlos de Laclos, ou "Gente Pobre", de Fiódor Dostoiévski, Ginzburg utiliza o dispositivo das cartas para explorar a dimensão polifônica da ficção.

Múltiplos pontos de vista são apresentados, sem que haja a preocupação com uma resolução tradicional —o final aberto do romance é apenas o elemento mais evidente dessa complexa construção de recusa da determinação unívoca na ficção.

Em alguns momentos, a elaboração epistolar de "A Cidade e a Casa" não oferece a intimidade descuidada, elíptica e às vezes insondável típica das cartas entre pessoas cuja convivência decorre ao longo de anos —piadas internas, referências compartilhadas que não precisam de explicação.

Às vezes a descrição romanesca de Ginzburg, sua necessidade de compor personagens a partir de detalhes definidores e de relações de dependência com indivíduos fora da cena imediata, impede o registro epistolar de se apresentar em toda sua potência estética.

É interessante observar também as várias menções ao telefone e aos telefonemas —são 30 ocorrências ao longo do romance—, conversas paralelas que formam um tipo de dimensão invisível da trama e da convivência.

O grande trunfo de "A Cidade e a Casa" é seu mergulho paciente na vida de pessoas comuns, trazendo a reboque uma série de instantâneos luminosos —a mulher que só come uma cenoura e um copo de "água fervente com limão", o quarto dos fundos com "o tapete persa e o quadro com as duas carruagens", a "tigela de figos mofados na geladeira", os aquecedores que "devem ser mantidos ligados sempre", as "mamadeiras de laranjada" para as crianças, assim por diante.

Ginzburg equilibra com maestria os elementos contingentes e as questões decisivas, sérias. A dinâmica das cartas é perfeita para dar acesso à ilusão da vida intermitente, absorvendo o leitor em um exercício de suprir lacunas, a partir do qual ele pode usufruir da incompletude numa espécie de "espaço mágico", entre o real e o artístico.

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