Descrição de chapéu
Claudio Leal

Chico Buarque cantou traumas do Brasil da ditadura a Bolsonaro

Compositor, que faz 80 anos, associou seu projeto estético à crítica dos impasses do país

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Claudio Leal

Jornalista e mestre em teoria e história do cinema pela USP

[RESUMO] De "Pedro Pedreiro", canção de seu disco de estreia em 1966, a "Que Tal um Samba?", lançada no fim do governo Bolsonaro, Chico Buarque retratou solavancos e retrocessos do país com coerência política e depuração estética, em um cancioneiro que transformou a música brasileira. Aos 80 anos, Chico, ainda que mais distante ideologicamente da classe média de que foi voz e consciência na ditadura, continua a sintetizar o país na energia histórica de sua canção.

Há seis décadas, em livros, peças e canções, Chico Buarque acompanha a "evolução da liberdade" e enreda seu projeto estético à crítica dos impasses brasileiros. Arquiteto de uma poética transformadora da música popular e da língua portuguesa, ele preservou sua vigília de poeta discreto e não cessou de pensar os desvios coletivos.

As intervenções de Chico como intelectual público diferem da pulsação de outros artistas de caminhos paralelos aos seus. Personalidades influentes em estética e política, Glauber Rocha, Augusto Boal, Gilberto Gil, Caetano Veloso e José Celso Martinez Corrêa se manifestaram quase sem tréguas ou intervalos, com estímulos contínuos no corpo da cultura, sempre elevando a tensão e a temperatura dos debates, ao custo de rupturas e exílios.

Chico Buarque (ao centro) na Passeata dos Cem Mil, manifestação de estudantes, intelectuais e diversos setores da população contra a ditadura militar, no Rio de Janeiro, em 26 de junho de 1968 - Folhapress/Folhapress

Dos compositores que fizeram a canção pensar em voz alta desde a década de 1960, renovando a representação do país, Chico Buarque preferiu as intervenções concisas, externadas em instâncias de crise, quando ressurge com a síntese da história e dos retrocessos.

Nas últimas três décadas, seu diálogo com jornais se fez escasso, mas sua consciência não cansou de falar na música, na literatura, em declarações pontuais e até em sua presença física, como ao acompanhar no Senado, em 2016, o julgamento do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff.

Chico passou a exercer o "poder constituinte" de sua geração (assim definido por Gilberto Gil) no ciclo de censura e delinquência de estado inaugurado em dezembro de 1968 pelo AI-5, o Ato Institucional nº 5. Em janeiro de 1969, alertados sobre ameaças de prisão, o compositor e a atriz Marieta Severo, sua então esposa, iniciaram um exílio de 14 meses em Roma, de onde só voltariam em março de 1970, meses após a posse do ditador Médici.

Entre 1966, o ano do estouro da canção "A Banda", e 1974, o fim do governo Médici, três visões hiperbólicas retrataram seu mito em transição. No rastro das canções de sua primeira fase, que aliaram beleza e profundidade à ingenuidade musical, perto do encontro divisor com Tom Jobim, o humorista Millôr Fernandes o chamou de "a única unanimidade nacional". Esse consenso se revelaria instável e seria quebrado mais tarde pelo próprio Millôr, convertido em desafeto.

Em crônica provocada pela montagem de "Roda Viva", em 1968, o dramaturgo Nelson Rodrigues comparou o Chico lírico ao Chico desconstrutivo do musical dirigido por Zé Celso. O compositor romântico virara "um vampiro saudoso de carótidas, querendo beber o sangue gelado da burguesia", apontou Nelson.

"Mas esse é o falso Chico, a negação do Chico, o anti-Chico. Ninguém mais nostálgico, ninguém mais fremente, ninguém mais pungente. E como é antiga e infeliz a sua ternura. Querem transformar um Pierrô do Méier num Guevara de capinzal vagabundo." Para Nelson, o verdadeiro Chico repousava nas modinhas e na obsessão das janelas de "A Banda", "Januária" (1968), "Carolina" (1968) e, claro, "Ela e Sua Janela" (1966). Assim, convenhamos, "'Roda Viva' é também o anti-Chico".

O terceiro retrato saiu da lente de Glauber. Nos dez anos da ditadura, em 1974, o cineasta enviou um depoimento à revista Visão em apoio ao esboço de abertura política de Ernesto Geisel, no qual constava a célebre declaração "acho o general Golbery um gênio —o mais alto da raça ao lado do professor Darcy [Ribeiro]", de efeito amargo em sua caminhada com a esquerda. No fluxo glauberiano, uma frase proclamava "que Chico Buarque é o nosso Errol Flynn".

Flynn personificou o herói no cinema americano —o Robin Hood, o Capitão Blood, o belo rapaz de Olivia de Havilland. Nessa analogia, o cancioneiro de Chico era um cipó lançado a almas em perigo. Telegráfico, Glauber coroou a coragem de capa e espada do compositor no texto em que abalou seu próprio papel de contestador da ditadura. Uma ressonância da heroicização buarquiana apareceria dez anos depois, em outro contexto, na epopeia da língua portuguesa erguida pela canção "Língua" (1984), de Caetano: "E que Chico Buarque de Holanda nos resgate".

Em 1974, quando foi comparado a Flynn, Chico lançou o disco de intérprete "Sinal Fechado", um nó nos censores com "Acorda Amor", que assinou sob o pseudônimo Julinho da Adelaide, "Festa Imodesta", de Caetano, "Copo Vazio", de Gil, "Me Deixe Mudo", de Walter Franco, e a música de Paulinho da Viola elevada ao título.

Com significados políticos abertos ou cifrados, pairavam até a primeira metade da década de 1970 suas canções "Sabiá" (1968), com Tom, "Roda Viva", "Apesar de Você" (1970), posteriormente censurada, "Partido Alto" (1972), "Quando o Carnaval Chegar" (1972), "Cálice" (1973, com Gil) e a superintrepretada "Jorge Maravilha" (1973).

Em 1971, o álbum "Construção" reunia "Deus lhe Pague", "Cordão" e "Samba de Orly" (com Toquinho e Vinicius de Moraes), além da faixa homônima ao título com arranjo do maestro tropicalista Rogério Duprat. Inspirado pela revolução portuguesa dos Cravos, ele ainda iria compor "Tanto Mar" em 1975.

A dialética Chico e anti-Chico nos serve para reconhecer as oscilações do artista em diálogo e confronto com a história em curso, a um só tempo sorrindo e de semblante sério, como na estampa de seu álbum de 1966 que virou meme na internet.

Sério, mas não grave, pois é mestre de jogos irônicos que elevaram a malícia na canção brasileira, a exemplo da figura da mãe orgulhosa de "O Meu Guri" (1981), do não que é sim de "Vence na Vida Quem diz Sim" (1972, com Ruy Guerra) e do sim que é não de "Folhetim" (1979), assim como as imagens violentas desfechadas por um "Deus lhe Pague".

A caricatura feita por Nelson Rodrigues separava o veio político do romântico no cancioneiro de Chico. Em 1994, nos 50 anos do artista, a gravadora PolyGram/Philips lançou cinco coletâneas com esta divisão temática: "O Político", "O Trovador", "O Amante", "O Cronista" e "O Malandro".

No entanto, a segmentação não corresponde ao hibridismo consciente de seu estilo, se atentarmos para o olhar político diluído na lírica de "Mar e Lua (1980)", "Iracema Voou" (1998) e, "em todos os sentidos", "O que Será" (1976).

Além disso, "Pedro Pedreiro", um marco da poesia participante, veio logo em seu disco de 1966, aquele debruçado nas janelas. Uma só canção conseguia reunir o Chico e o anti-Chico na representação do país que se modernizava sem liberdade e, em vários planos, sem modernidade. Dessa forma, talvez seja mais exato dizer que a oscilação não vem do poeta, mas do Brasil, que ora é Chico, ora é anti-Chico.

Nos anos de colapso da esquerda, prisão de Lula e de ascensão da extrema direita com o projeto arcaico e autoritário de Jair Bolsonaro, Chico enfrentou mudanças na recepção a suas ideias.

Em 21 anos de ditadura, ele foi censurado pelo estado e sofreu incontáveis ameaças de morte, mas suas opiniões políticas não perderam a força em uma parte expressiva da sociedade, sobretudo na classe média formada pela sensibilidade buarquiana. A vitória de Bolsonaro aprofundaria a distância ética e emocional entre seu ideário e o da maioria dos eleitores brasileiros.

Pode-se ver o arco da crise do país em suas reaparições para a grande síntese —do álbum "Chico", de 2011, ao registro ao vivo "Que Tal um Samba?", de 2023, passando pelos livros de ficção "Essa Gente", de 2019, e "Anos de Chumbo", de 2021.

Três canções concentram seu pensamento nessa fase de regressão e fossos sociais expostos —em tempos distintos, uma parece passar o bastão para a outra.

"Sinhá" (com João Bosco, 2011) e "As Caravanas" (2017) dialogam no desenho dos reflexos duradouros da escravidão e da cadeia do mando. "Que Tal um Samba?" (2022) surge como a volta por cima da história, o "banho de sal grosso", espelhando-se em versos de "Beleza Pura", de Caetano, em sua ode à pele escura —e, pelos poros desta, à civilização. Todas elas nasceram em um período de renovação e depuração musical, em seu diálogo fecundo com o maestro e arranjador Luiz Cláudio Ramos.

Em 2018, Chico autorizou enfim a remontagem de "Roda Viva" por Zé Celso, que decidiu atualizá-la com a ponta de lança "As Caravanas", incluída na mais bela cena do espetáculo redivivo. "Com negros torsos nus deixam em polvorosa/ A gente ordeira e virtuosa que apela/ Pra polícia despachar de volta/ O populacho pra favela/ Ou pra Benguela, ou pra Guiné."

Com frequência, Chico sofre críticas por estar alinhado a priori com a esquerda tradicional, mas a rígida coerência de sua visão política saiu fortalecida depois de mais um arranjo de violência de estado e liberalismo econômico, na adesão da elite financeira a Bolsonaro. Se a concentração de renda persistiu e se brutalizou sob o disfarce de questões morais, era imperativo seu apoio a candidatos do PT e PSOL, ainda associados à justiça social. Como agravante, as últimas eleições viraram encruzilhadas.

Na noite de 23 de outubro de 2018, Fernando Haddad, então candidato a presidente, reuniu artistas e militantes em um comício no bairro da Lapa, no Rio. No palanque, em posição de destaque, Chico, Caetano, Mano Brown e a candidata a vice de Haddad, Manuela D’Ávila.

Por boas razões, só repercutiu a crítica de Brown às falhas da comunicação do PT com as periferias. "Se não está conseguindo falar a língua do povo, vai perder mesmo", disse o rapper. De seu lado, Chico fez uma declaração mais hábil, sem valentia inócua e consciente do peso das palavras no momento de humilhação da esquerda. Seu breve discurso:

"Eu imagino que lá fora muita gente, cidadãos conservadores, cristãos, os chamados coxinhas, tenham votado no candidato fascista e agora estejam vendo a onda de boçalidade que toma conta das ruas, cada vez mais, e que depois do primeiro turno só fez piorar e ninguém sabe onde vai parar. Onde vai parar a matança de gays, mulheres, de trans, de travestis, de estudantes, de capoeiras que ousaram dizer que votaram no PT. E que, nas periferias, onde afinal está o povo que mais sofre com a miséria e a violência, e votaram por mais violência e mais miséria, votaram contra si mesmos, eles, talvez, na última hora, virem o voto. Não queremos mais mentiras. Não queremos mais força bruta. Queremos paz. Queremos alegria. Queremos Fernando e Manuela".

No dia 26 de outubro, no canal televisivo francês M6, foi ao ar apenas um breve trecho da entrevista do artista aos repórteres Samuel Duhamel e Diane Douzillé. Em Paris, Chico comparou seu papel de intelectual na ditadura e na iminência de um novo governo antidemocrático.

"Tenho sido muito criticado. É normal. Estou aqui para dar minha opinião, e sou criticável. Mas alguns dizem: ‘Ele é apenas um artista, não é um político’ ou ‘ele é um burguês, não pode falar pelo povo, porque é rico’. Isso é velho, conheço isso desde os anos da ditadura", comentou.

"Bolsonaro é um fascista. Todos seus discursos e pronunciamentos, desde o início de seu tempo de deputado, são próximos do fascismo, para não dizer do nazismo. Ele prega o extermínio dos comunistas, a perseguição a homossexuais, feministas, índios, quilombolas. Ele é uma ameaça também para as florestas."

"O movimento anti-Lula é muito forte, o que fortalece a candidatura de Bolsonaro. Se argumentou que havia muita corrupção nos governos do PT, o que é verdade. Havia corrupção, como havia antes e há ainda hoje."

Ricardo Stuckert/Divulgação
Caetano Veloso, Mano Brown, Fernando Haddad e Chico Buarque em ato da campanha do PT para a Presidência da República em 2018, na qual Haddad representava o partido - Ricardo Stuckert/Ricardo Stuckert/Divulgação

"Hoje, não sou um apoiante do PT, mas da democracia, que está ameaçada no Brasil. E é um problema que diz respeito a todo continente. Não foi por acaso que, nos anos 1960, 1970, tivemos ditaduras militares no Brasil, na Argentina, no Chile, no Uruguai… E começou no Brasil. Com a eleição de um fascista no Brasil, é todo o continente que se aproxima desta via autoritária. E mesmo na Europa esta onda cresce, a extrema direita se fortalece por todo o lado."

Para reconciliar o país, Chico defendia uma aliança sem preconceito ideológico. "Os brasileiros vão se dar conta que a eleição de Bolsonaro será um erro enorme. Não voto pela esquerda, voto pela democracia. Quero que as pessoas de esquerda, centro e direita façam como eu", declarou à M6.

Bolsonaro venceu a eleição e confirmou seus temores. Quatro anos depois, em 2022, Lula retornaria à Presidência. Meses antes, Chico Buarque lançara "Que Tal um Samba?", expressando seu convite: "De novo com a coluna ereta, que tal?/ Juntar os cacos, ir à luta/ Manter o rumo e a cadência/ Esconjurar a ignorância, que tal?/ Desmantelar a força bruta".

O país parecia se mover outra vez com a energia histórica de sua canção.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.