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Bom livro sobre robô assassino revela pobreza da ficção científica atual

Obra premiada sobre 'Pinóquio neurodivergente', 'Alerta Vermelho' acentua o conservadorismo literário do mercado

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Gabriel Rocha Gaspar

Jornalista, é mestre em literatura pela Sorbonne Nouvelle Paris 3

Alerta Vermelho

  • Preço R$ 49,90 (216 págs.)
  • Autoria Martha Wells
  • Editora Aleph
  • Tradução Laura Pohl

"É mais fácil imaginar o fim do mundo que o fim do capitalismo."

A frase atribuída por Mark Fisher a dois filósofos distintos, Slavoj Zizek e Frederic Jameson, ressoa durante a leitura de "Alerta Vermelho", de Martha Wells.

Ilustração da capa de 'Alerta Vermelho', de Martha Wells - Divulgação/Divulgação

Vencedor dos prêmios Hugo e Nebula, este primeiro volume de uma novela de ficção científica em sete episódios apresenta um autodenominado Robô-Assassino, que narra num diário as suas altercações com uma humanidade interestelar num futuro distópico.

Como personagem, a inteligência artificial quase anônima, assexual, sem gênero definido, mas inegavelmente humana, tem apelo —assim como seu estilo narrativo direto, que lembra um roteiro cinematográfico.

A história traça o arco incompleto de conversão da máquina em gente, a partir da conquista da autonomia individual. E o ponto mais interessante dessa jornada é que o protagonista parece ser neurodivergente.

Sua fobia social, a literalidade com que encara as interações humanas, o hiperfoco em séries televisivas e, principalmente, sua necessidade de racionalizar as emoções alheias para construir reações socialmente aceitáveis dão sustentação a essa tese.

Na economia do romance, o Robô-Assassino —fabricado com peças metálicas mescladas a matéria orgânica para prestar serviços pontuais de segurança privada— hackeia seu próprio módulo de controle externo e passa a interagir com o mundo ao redor da maneira que lhe convém, libertando-se da "empresa".

Essa empresa, responsável por sua produção e locação a uma unidade de pesquisa num planeta hostil, é o emblema de um mundo externo aplainado pelos clichês da ficção científica contemporânea dos Estados Unidos, que contrasta com a bem elaborada complexidade do protagonista.

Esse contraste faz do Robô-Assassino um rico habitante de um mundo imaginativamente pobre. E não é pobre por ser mal elaborado, mas porque não escapa em nada de um dos polos da empobrecida dicotomia que impera na imaginação americana de futuro.

Ou é o apocalipse zumbi, em que humanos sobreviventes se matam por recursos escassos enquanto enfrentam hordas de mortos-vivos sanguinários; ou o universo repulsivo à la "Black Mirror", onde a hegemonia capitalista mostra sua face predatória mais crua, subjugando tudo e todos à ganância de uma classe dominante etérea, invisível.

Nesses mundos distópicos (e o de Wells se inscreve no segundo modelo), o trabalho só existe como uma abstração, que surge esporadicamente em caráter extrativista e sem sentido econômico claro, sem objetivo nem consequência nas relações sociais. É reduzido a um castigo de inspiração bíblica.

Será que acabou o fôlego da ficção científica para criar algo que não seja uma radicalização da exploração? O que essa falta de criatividade pós-capitalista na ficção revela sobre a nossa era? À beira do precipício de caos ambiental, pandemias, guerras por procuração, pobreza e brutalidade, não conseguimos vislumbrar nada além da queda?

No caso de "Alerta Vermelho", o desaparecimento mágico da luta de classes faz com que a "empresa", sem nome nem rosto, mas onisciente e onipresente, se converta em um deus. Pifado o motor da história, as grandes mudanças estruturais viram água parada, restringindo o espaço de criatividade literária à concepção dos personagens.

Martha Wells tem o inegável mérito de aproveitar essa estreita janela no quarto do conservadorismo literário do mercado para oferecer uma perspectiva narrativa original.

Curioso que, no livro, essa espécie de Pinóquio neurodivergente se recolhe em um cubículo para recobrar as energias. Talvez cubículo seja uma boa analogia para o próprio subgênero de futuro distópico em que a obra se inscreve.

Imagino que interessante seria ver esse intrigante personagem inserido em uma estrutura de maior complexidade social, econômica e política. Ou seja, de menos Fukuyama e mais Marx.

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