Quem foi Stefania Bril, que fotografou São Paulo entre a ruína e a desobediência

Polonesa radicada no Brasil ganha mostra no Instituto Moreira Salles, com fotografias que lançam olhar crítico sobre as cidades

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A imagem mostra um edifício em processo de demolição, com paredes parcialmente destruídas. Dois tratores Caterpillar estão posicionados em primeiro plano, cobertos de terra. No andar superior do edifício, várias pessoas estão observando a cena, algumas em pé e outras sentadas. Um cartaz visível na parede diz 'com estuque ARTUR ALVES PINTO ARENA 2231'. O ambiente é urbano e parece estar em uma fase de construção ou reforma.

'Construção/ Destruição', avenida João Dias, São Paulo, 1973 - Acervo Instituto Moreira Salles / Arquivo Stefania Bril

São Paulo

Stefania Bril era uma fotógrafa desobediente. Em oposição ao que preconizava o fotojornalista Henri Cartier-Bresson, ela não perseguia o instante decisivo, aquela fração de segundo em que todos os elementos se alinham para produzir uma imagem paradigmática.

Em vez disso, o alvo de sua lente era gente comum vivendo instantes banais. Um homem cochilando no trabalho, crianças se divertindo em um balanço, freiras tirando fotos em um museu. Para a polonesa radicada no Brasil, o memorável e o extraordinário estavam na trivialidade dos dias.

A imagem em preto e branco mostra um homem deitado de bruços na grama, próximo a um aviso que diz 'NÃO PISE NA GRAMA'. O homem está usando uma camisa de manga longa e calças, e parece estar focado em algo à sua frente. Ao fundo, há um arbusto e uma árvore, além de um piso de ladrilhos.
'Não Pise na Grama', 1973 - Acervo Instituto Moreira Salles / Arquivo Stefania Bril

A partir desta terça-feira (27), a exposição "Stefania Bril: Desobediência pelo Afeto" leva ao público o olhar dessa fotógrafa pouco afeita a convenções.

Em cartaz no Instituto Moreira Salles, em São Paulo, a mostra reúne cerca de 160 fotografias e faz um panorama da carreira de Bril, artista que tem sua obra exposta pela primeira vez em três décadas.

Morta em 1992, ela deixou aproximadamente 15 mil imagens. No entanto, os trabalhos receberam pouco destaque ao longo dos anos justamente por seu caráter disruptivo.

"Ela desobedecia o que seria uma boa fotografia nos conceitos tradicionais", diz Ileana Pradilla Ceron, uma das curadoras da mostra. "Stefania fotografou pessoas anônimas em imagens que não representam o poder."

Além disso, não interessava a ela fotografar comunidades desconhecidas, como fez Claudia Andujar nos 1970 com os yanomamis, ou registrar momentos de convulsão social, como fez Evandro Teixeira durante a ditadura militar.

Tampouco queria testemunhar conflitos armados, a exemplo de Robert Capa. O fotógrafo húngaro cobriu cinco guerras e morreu aos 40 anos quando pisou numa mina terrestre, em 1954, no Vietnã.

"Na maioria dos casos, o que sempre se valoriza na imagem é o heroísmo, mas para ela a fotografia não era heroica", diz Ceron. "Ela fotografava o movimento. Não tem instante decisivo. É a vida acontecendo."

A imagem que abre a exposição registra um batismo no rio Tietê, em Itu, interior de São Paulo. Na cena, vemos mulheres com véus brancos na cabeça em uma atmosfera de sacralidade. É como se estivéssemos diante de uma paisagem imaculada. Um elemento, porém, destoa e perturba a ordem.

É uma menina curvada, que parece tentar escapar do colo da mãe e se lançar dentro das águas do rio.

Assim como Bril, muitos de seus fotografados eram insubordinados. "Nas fotografias dela, são mulheres e meninas que criam esse ruído, essas pequenas desobediências", diz Ceron.

Para a curadora, esse aspecto desafia as críticas de que a fotógrafa teria feito uma produção despolitizada. "Tem, sim, um caráter político na obra dela, mas não é a política dos homens. É uma política que chamamos de portas adentro, ou seja, a política do doméstico."

A insubmissão, aliás, faz parte da biografia de Bril. Nascida na Polônia em 1922, ela escapou do holocausto judeu após adotar uma identidade falsa. Quando a Segunda Guerra terminou, ela se formou em química e decidiu morar no Brasil, onde trabalhou como bioquímica e química nuclear.

Começou a estudar fotografia aos 47 anos, no final da década de 1960. Depois de formada, publicou artigos sobre fotografia no jornal O Estado de S. Paulo por mais de uma década.

A imagem mostra uma mulher com cabelo curto e escuro, usando óculos e uma camisa de botão. Ela está fazendo um gesto de silêncio, colocando o dedo indicador sobre os lábios. O fundo da imagem é branco, destacando a figura da mulher.
Autorretrato de Stefania Bril, 1971 - Acervo Instituto Moreira Salles / Arquivo Stefania Bril

Em seu trabalho, lançou um olhar crítico sobre as grandes cidades, que sacrificam o verde da natureza em favor do cinza do concreto armado. Em uma das fotos da exposição, vemos o tronco de uma árvore espremido no meio de um muro feito de madeira.

Por um lado, a imagem pode ser lida como uma metáfora para o ímpeto do homem de vencer a natureza. Por outro, representa o fracasso dele diante dessa empreitada. A árvore, afinal, continua de pé.

Há ainda uma fotografia que mostra o elevado Presidente João Goulart, o Minhocão, localizado no centro de São Paulo. Na cena, vemos uma placa de trânsito onde lê-se: "Não passe pela direita". A decisão de enquadrar esse letreiro na imagem não parece fortuita.

Inaugurado em 1971, durante a ditadura militar, o viaduto se tornou símbolo de uma política urbana em que o automóvel tem primazia em relação às pessoas. "Quando ele foi construído, destruiu toda a vida que tinha ali e acabou com o comércio, ou seja, desertificou uma parte da cidade", diz Ceron.

"Por meio das fotografias, ela criticava essa ideia de cidade padronizadora e achatadora de diferenças", acrescenta Miguel del Castillo, que também assina a curadoria da mostra. "Essa ideia não comporta aquele que não está dentro do conceito de homem universal, ou seja, o homem branco e europeu."

Bril parecia entender que a promessa anunciada pela modernidade havia desmoronado e se transformado em escombros. Não à toa, uma das imagens traz a demolição do que parece ser um cortiço. Dentro do imóvel destruído, quatro pessoas estão alheias ao colapso iminente da estrutura.

"Ela enxergava as ruínas desse projeto modernizador", diz Castillo. "É como se ela estivesse mostrando a falência da cidade moderna e construindo um outro espaço."

A artista almejava erguer a metrópole das pessoas, e não das máquinas. Por esse motivo, colocou em evidência a população das capitais por onde passou, como São Paulo, Paris e Cidade do México.

Nesses lugares, fotografou momentos bem-humorados. Exemplo disso é a fotografia de um homem deitado sobre um gramado, mas com os pés para fora do canteiro. "Não pise na grama", adverte uma placa. "E o cara está obedecendo. Não está pisando mesmo na grama", diz Castillo.

O sarcasmo está presente também na série "Descanso", que traz imagens de pessoas dormindo em seus postos de trabalho. São trabalhadores que podem estar resistindo à lógica produtivista ou sucumbindo ao esgotamento causado por ela.

"O humor e o sarcasmo funcionam em dois sentidos, como alívio cômico para suavizar a opressão e como crítica ácida", diz o curador.

Outras fotografias deixam o sarcasmo de lado para apostar numa certa candura, como as imagens que mostram crianças brincando. "Embora haja críticas a diversas questões, é uma produção muito esperançosa e empática", diz Castillo.

A própria fotógrafa deixou bem claro o seu projeto estético em um texto de 1975. "Nesse nosso mundo de violência, continuo obstinadamente a acreditar no ‘homem humano’. Acredito que as coisas sem importância são as únicas que dão importância à vida do homem."

 Stefania Bril: Desobediência pelo Afeto

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