Descrição de chapéu Filmes mostra de cinema

Visão feminina ganha força em Gramado com filmes de Juliana Rojas e Eliane Caffé

'Cidade; Campo' dividiu a noite de exibição com 'Filhos do Mangue', entre tom realista, fantasmagórico e documental

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São Paulo

"Cidade; Campo", filme de Juliana Rojas, é um dos mais contemporâneos entre os exibidos até agora no Festival de Gramado. É queer, místico, crítico às relações de trabalho modernas e à ação do homem sobre a natureza. Dividiu o dia do evento com "Filhos do Mangue", obra de Eliane Caffé que trata de exploração e violência doméstica, com relatos reais de vítimas mulheres.

A perspectiva feminina é um destaque dessa edição do evento, que tem quatro realizadoras entre os sete longas que disputam o melhor filme. Além desses dois, competem pelo Kikiko "Pasárgada", de Dira Paes, diretora e protagonista, e "O Clube de Mulheres de Negócios", de Anna Muylaert.

Cena do filme 'Cidade;Campo', de Juliana Rojas
Mirella Façanha e Bruna Linzmeyer em cena do filme 'Cidade; Campo', de Juliana Rojas - Divulgação

"Cidade; Campo" conta duas histórias sem relação direta entre elas, mas que integram uma narrativa maior de luto e de ancestralidade, com protagonistas femininas que têm pendências familiares.

A primeira é a de Joana —Fernanda Vianna—, que perdeu a casa onde vivia desde a infância devido ao rompimento da barragem da Vale em Brumadinho, em Minas Gerais. Ela se muda para a casa da irmã em São Paulo e estabelece uma relação sensível com o sobrinho neto, que mora junto da avó. Vira faxineira e passa a trabalhar para um aplicativo de limpeza de casa por demanda, vivendo as dificuldades modernas da falta de vínculo empregatício formal.

A protagonista dessa parte do filme, Joana contou, em debate nesta quinta, que no festival de Berlim, onde saiu premiado pela direção na mostra Encontros, a classificaram como vítima da ação climática. "Mas para mim, ela também é vítima de um capitalismo absoluto e violento presente em Minas Gerais, que se perpetua há décadas. Ela, literalmente, perde o chão", diz Vianna.

O outro enredo é protagonizado por Flavia –Mirella Façanha– que faz o movimento oposto. Deixa a cidade e vai para o campo para viver o luto de seu pai, já que não acompanhou sua morte. Decide morar na casa que era dele acompanhada da namorada Maria —Bruna Linzmeyer. Lá ela trabalha com a terra e inicia uma busca pela memória paterna, facilitada por um ritual de ayahuasca.

Nos dois casos, é marcante a presença dos símbolos e dos fantasmas –internos ou literais, já que elas têm visões. Em uma das cenas, Façanha acorda de madrugada, sozinha, e caminha em volta da casa para investigar o barulho que a assombra todas as noites, envolvendo muito bem o espectador no suspense.

"Meu filme começa na cidade, no concreto, e vai ao onírico e ao fantástico ao transcorrer para o campo, onde há esse universo mais fantasmagórico", diz Rojas, que o filmou na pandemia, em São Paulo e no interior de Mato Grosso do Sul, origem da família paterna. O filme, portanto, retrata algumas buscas pessoais da diretora.

Cena do filme 'Cidade;Campo', de Juliana Rojas
Cena do filme 'Cidade;Campo', de Juliana Rojas - Divulgação

Ela conta que não quis usar a fantasmagoria como um elemento de terror, mas para abordar uma existência espiritual, que refletisse a morte e os antepassados. Esses momentos muitas vezes na mata noturna. "O filme também adota uma linguagem onírica, com momentos mais surreais, como quando a Flavia tira a planta da terra e as raízes são os cabelos de seu pai."

Uma das cenas com chances de bombar é a longa cena de sexo entre Flavia e Mara, embalada por uma música de Zezé Di Camargo e Luciano. Para Flavia, muito aplaudida em Gramado, a irreverência da cena não está em mostrar o sexo, mas o afeto entre duas mulheres, numa relação que foge de vários dos padrões heteronormativos.

"Sempre achei o cinema ameaçador para mim como atriz dentro do mercado de trabalho. As opções para uma atriz preta e gorda são muito reducionistas", conta atriz, cuja trajetória é mais teatral. "Não quero estar no cinema para perpetuar histórias sobre as quais luto contra há tantos anos."

Cena do filme 'Filhos do Mangue', de Eliane Caffé
Cena do filme 'Filhos do Mangue', de Eliane Caffé - Divulgação

Já o filme de Eliane Caffé se desenrola em um ambiente muito mais solar e com uma violência mais explícita, atenuada pela escolha de músicas alegres, pela paisagem do mangue e pelo convívio amistoso entre as mulheres. Foi filmado em uma comunidade indígena e ribeirinha da Barra do Cunhaú, no Rio Grande do Norte. Pescadores locais integraram o elenco, e várias passagens contaram com improviso.

O protagonista é Pedro Chão —Felipe Camargo— esconde o dinheiro da associação de pescadores e vira alvo dos conterrâneos. Ele perde a memória e esquece o passado bandido: ganhava a vida com exploração sexual de mulheres e de catadores de caranguejo, além de agredir a mulher —vivida por Titina Medeiros. A agressão dentro de casa é um ato comum a outros homens daquela vila.

O filme de Caffé, que dividiu o roteiro com o dramaturgo Luis Alberto de Abreu —numa adaptação do livro "Capitão", de Sérgio Prado—, torna-se quase um documentário quando mulheres se reúnem para desabafar sobre as situações vividas em casa, já que parte daqueles relatos são verdadeiros.

"Filhos do Mangue" é o quinto filme de Eliane, o primeiro feito a convite. "Em todos os trabalhos que assinei a direção, o projeto deu-se de uma necessidade de trabalhar, partiu de uma necessidade subjetiva, individual e daí foi se alastrando. Esse filme não foi assim. Não é um filme de uma pessoa", afirmou.

A diretora subiu ao palco do festival com quase todo o elenco, parte dele sendo originário dessa vila.

A jornalista viajou a convite do Festival de Gramado

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