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Corpo de Gena Rowlands expressou grandiosidade de suas personagens

Dirigida ou ao lado do marido, John Cassavetes, atriz morta aos 94 fez papéis aflitivos, entre amores e porres homéricos

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Bruno Ghetti

Jornalista e crítico de cinema

Rio de Janeiro

Não costuma haver unanimidade nas artes, mas Gena Rowlands talvez tenha sido uma exceção. A atriz, morta na última quarta (14), aos 94, teve uma carreira muito singular, marcada pela incursão no cinema independente e experimental do marido, John Cassavetes.

Mas foi uma atriz também com bastante prestígio para muito além do ambiente "indie": era igualmente reverenciada pelos que a acompanharam em suas obras mais comerciais —e mesmo entre os detratores do cinema cassavetiano.

Gena Rowlands em "Faces", de John Cassavetes
Gena Rowlands em 'Faces', de 1968, de John Cassavetes - Divulgação

O que de mais próximo a uma rejeição que ela conheceu talvez tenha sido o que disse a poderosa crítica Pauline Kael, em sua análise sobre "Uma Mulher Sob Influência", de 1974. "Sua performance é o suficiente para meia dúzia de 'tours de force' e uma fileira de Oscars —leva-nos à exaustão. É concebível que ela seja uma ótima atriz, mas nada do que ela faz é memorável, porque ela faz demais."

Kael não estava de todo errada, porque de fato existe um elemento extenuante nas performances dos atores de Cassavetes em geral —e que, inclusive, fazia parte de seu projeto estético. Mas a crítica errou feio em duas coisas: Rowlands não levou Oscar algum por aquele longa, embora tenha sido indicada pelo filme.

E, sobretudo, fez ali uma performance totalmente memorável. Tanto é que hoje o filme costuma ser apontado como o ápice de Rowlands na tela, mas não apenas. É também visto por muitos como a maior performance já apresentada por um ser humano no cinema.

Rodado na própria casa dos Cassavetes, no esquema de cooperação de amigos habitual, o longa traz a atriz como uma dona de casa mentalmente perturbada —aliás, personagens com os nervos em frangalhos eram a grande especialidade de Rowlands. Seu marido, muito ciente disso, criou uma notável galeria de personagens sob medida para seu talento. E que a imortalizariam.

Mas até chegar ali, Rowlands precisou trabalhar em projetos medíocres por muitos anos. Nasceu em 1930 e começou a carreira no teatro, certamente com um estilo de atuar mais convencional. Sempre muito bela, não conseguia se afastar de papéis que realçavam sua formosura, nos seus trabalhos iniciais dos anos 1950.

Seu primeiro destaque audiovisual foi na TV, na série "87th Precinct", de 1961, em que interpretava uma jovem surda e muda. Na época, já estava casada com Cassavetes, a quem havia conhecido no meio teatral nova-iorquino. E só "aconteceu" de fato como atriz depois que ele deixou de ser apenas ator para se tornar também diretor.

Gena Rowlands em cena do filme 'Gloria', de 1980 - Collection Christophel via AFP

Ainda que Roberto Rossellini e Ingrid Bergman (e, antes, Anna Magnani) e Jean-Luc Godard e Anna Karina tenham formado parcerias brilhantes, foi provavelmente Rowlands e Cassavetes a dupla marido-mulher mais frutífera da história do cinema.

Fizeram juntos dez filmes, com voos altos sobretudo após "Faces", de 1968, e "Assim Falou o Amor", de 1971. Aos poucos, os dois foram desenvolvendo um estilo novo, algo revolucionário, de explorar um ator diante de uma câmera.

O cinema moderno europeu (pós- Rossellini) foi muito marcado por uma certa emancipação do corpo do ator em relação à psicologia do personagem que ele interpreta. Já nos Estados Unidos, a modernidade foi moldada por outra corrente performativa, a partir do chamado "método" baseado nos estudos de Constantin Stanislávski, em que a pessoa busca em suas próprias experiências o substrato para a sua atuação.

A Rowlands dos filmes de Cassavetes trazia um pouco de cada coisa. Sua performance não era fruto apenas de uma intenção da atriz, de um comando de seu cérebro —e sobretudo de suas emoções— para o corpo expressar isso na tela. Não: sua corporalidade, livre das motivações da personagem, também dava o tom em suas performances.

Seus gestos excessivos, aparentemente mal domados, por vezes inexplicáveis, e seu modo de andar e se portar transmitiam informações que iam muito além do que o conteúdo das falas da personagem pretendia.

É claro que Rowlands sentia as dores e delícias de suas criações e transmitia isso a elas. Mas o olhar da atriz era tão parte de suas performances como também era, por exemplo, o mover de seus magníficos cabelos. Por isso a figura dela era sempre tão hipnotizante; talvez tenha sido a atriz moderna por excelência. E de presença tão memorável, contrariamente ao que dizia Kael.

Quem há de esquecê-la em "Noite de Estreia", de 1978, quando toma um dos porres mais homéricos de que já se teve notícias e, mesmo mal conseguindo caminhar, ainda assim vai ao palco para estrear um espetáculo com casa lotada?

Ou nas cenas de "Glória", de 1980, que lhe rendeu a segunda indicação ao Oscar, quando ela caminha pelas ruas ao lado de um garoto, segurando a bolsa com uma mão e um revólver com a outra?

E será que alguma atriz foi capaz de causar tanta aflição quanto ela em "Amantes", de 1984, quando sua personagem tomada de boas intenções e "fluxos de amor" —os "love streams" do título original— nas veias, sai para comprar um bicho de estimação e volta literalmente com um zoológico inteiro?

São criaturas cinematográficas fortes demais para esquecer. Alguns papéis em filmes de outros cineastas também destacaram seu talento, como o televisivo "A História de Betty Ford", de 1987, de David Greene, e "A Outra", de 1988, de Woody Allen. Mas a força da Rowlands sob a batuta de Cassavetes jamais voltou a ser atingida.

O casamento durou até a morte dele, em 1989. Foram anos difíceis, principalmente pelo alcoolismo e o temperamento intransigente de Cassavetes. "Era mais comum eu querer matá-lo do que querer me divorciar dele", disse a atriz, certa vez.

Após a viuvez, começou um novo ciclo no cinema comercial, em papeis bem menos exigentes. Ganhou finalmente um Oscar em 2015, especial, pelo conjunto da obra. Nas últimas décadas, preferia atuar em filmes dirigidos pela própria prole, fosse o filho Nick Cassavetes, em "Diário de Uma Paixão", de 2004, ou a filha Zoe Cassavetes, em "Uma Americana em Paris", de 2007.

"Não há nada que não possamos entender sobre os outros, se estivermos abertos a isso", dizia a atriz, explicando por que o público se identificava tanto com suas personagens, ainda que à beira da loucura. Mas isso é só parte do processo: o mais difícil, que é fazer o espectador se abrir em empatia para tentar compreender um personagem, isso só os grandes atores podem fazer. E Rowlands foi insuperável nesse quesito.

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