'Cidade; Campo' encara um Brasil cercado pelo trabalho precarizado e mortífero

Com duas histórias de migrações femininas, Juliana Rojas observa ainda resultados do avanço do homem sobre a natureza

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São Paulo

Trabalhar sempre cansou nos filmes de Juliana Rojas. Seja cuidando de um mercadinho de bairro, em "Trabalhar Cansa", seja criando um bebê lobisomem em "As Boas Maneiras". Em meio ao horror, ainda dá para se divertir, claro, como em "Sinfonia da Necrópole", um musical no cemitério.

"Cidade; Campo", o novo longa da campineira de 43 anos, também se reveste do tétrico, delineando um país já exaurido do trabalho precarizado nas metrópoles e do domínio das monoculturas. É uma situação instável que impactou a própria produção, que chega aos cinemas quatro anos após o início da sua gestação.

Cena do filme "Cidade; Campo", de Juliana Rojas
Cena do filme 'Cidade; Campo', de Juliana Rojas - Fernanda Vianna/Divulgação

"Tivemos duas interrupções, primeiro em 2020, ainda no início do projeto, e depois em 2021, quando a equipe teve uma contaminação [por Covid-19]. Todo mundo ficou bem, mas só retomamos no ano seguinte, e muita gente já não tinha agenda", diz Rojas, premiada como melhor diretora na mostra Encontros do Festival de Berlim.

Intempéries também ditam os destinos das personagens nas histórias de migração que dividem o filme. Joana (Fernanda Vianna) foge de Brumadinho após o rompimento das barragens da Vale, e se refugia na casa da irmã, em São Paulo.

Carrega consigo as memórias do sítio, de seu cavalo branco, das suas plantações, mas acaba entre bicos no Jardim Paulista, bairro nobre da zona oeste da cidade, fazendo limpezas para um Uber de faxineiras.

"O trabalho ocupa grande parte das nossas vidas. E hoje há essas narrativas ilusórias, de que você pode ser seu próprio chefe, mas não tem nenhum direito garantido", afirma a diretora sobre a personagem, que representa as vítimas em nada indenizadas após o desastre ambiental.

Ainda assim, Joana cai da cama de madrugada e, como boa mineira, vê e ensina seu sobrinho-neto a ver o Sol nascer sobre as casas da cidade violenta que parece tão singela nas lentes de Rojas. Entre um serviço e outro, à noite, descansa com as colegas entre cervejas e karaokê.

Em um dos momentos mais tocantes do longa, a personagem de Vianna, atriz veterana do Grupo Galpão, entoa uma cantiga para seu cavalo, Alecrim, criada pela mãe de Rojas em homenagem a um equino de saudosa memória.

A montagem de Cristina Amaral, por meio de fusões, dá conta das mudanças pelas quais Joana passa e do seu luto —não só da casa, mas de um filho com quem perdeu contato—, enquanto a trama avança para um lado onírico. "Eu gosto da metamorfose da imagem. É importante para estabelecer o tom fantasmagórico", diz a cineasta.

O enredo muda quando a câmera atravessa uma densa névoa na estrada. De São Paulo, vamos ao interior do Mato Grosso do Sul. Flavia (Mirella Façanha) e Mara (Bruna Linzmeyer) saem da cidade e mergulham na fazenda do pai da primeira, morto há pouco. Largam os empregos na esperança de um refúgio, mas se deparam com uma vida imprevisível.

Desfrutam da liberdade rural, tomam banho de lua de peito aberto. Mas algo estranho ronda o lugar, entre lavouras que não dão certo e bezerros natimortos.

"Elas pensam em qualidade de vida, mas na mata habitam muitos mistérios", diz Façanha. "A violência vai além dos corpos humanos. Quando o colonizador desumaniza o que não se parece com ele, isso se estende à natureza."

Para traduzir uma progressão e um espelhamento, vemos aqui rimas não só com elementos da primeira história —como uma misteriosa estrela vermelha— como de toda a carreira de Rojas —teatros de sombras, doenças misteriosas, referências folclóricas, duplos.

Destaque ainda para a cena de sexo, uma das mais comentadas durante o Festival de Gramado, onde o filme foi laureado pela crítica. O romance abre ao som do romantismo de "Temporal de Amor", de Leandro e Leonardo, mas logo o silêncio preenche o quarto com gestos delicados e muitos planos detalhe.

"Queríamos uma cena com desejo, relaxamento. No cinema, a gente tem essa ideia de um sexo sem pausa, sem carinho. Pensamos muito nisso, de a Bruna apertar uma gordurinha nas minhas costas, ou quando eu passo os dedos na orelha dela", afirma Façanha. "Mas não foi a cena mais difícil."

A nudez já faz parte da carreira da atriz, que estreia no cinema após o sucesso, no teatro, da peça "Isto É um Negro?", que rodou o Brasil e a Europa, e na qual Façanha fica nua durante toda a apresentação. "Um corpo preto, gordo, que se movimenta, ele gera ojeriza, nojo. Assim como em corpos transgêneros, tudo o que não corresponde ao que o padrão espera, gera um desespero. Você se torna um espelho."

A dificuldade a valer, para Façanha, se deu numa das sequências finais, onde Flavia e Mara começam a se perder na natureza após a chegada de uma amiga do pai, que as conduz pelos mistérios da ayahuasca e, por fim, até o ancestral.

"Termina em fogo, mas não é um fim. O fogo regenera, é uma imagem generosa", diz a atriz. "No dia a dia, há muito a ser feito. Se não, é uma morte por dentro."

Cidade; Campo

  • Onde Em cartaz nos cinemas
  • Classificação 14 anos
  • Elenco Fernanada Vianna, Mirella Façanha, Bruna Linzmeyer
  • Produção Alemanha, França, Brasil, 2024
  • Direção Juliana Rojas
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