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'Impostora: Yellowface' mergulha nos paradoxos da representatividade

Livro de R.F. Kuang não dá conta da complexidade do racismo, mas sim da insanidade do comportamento no ambiente digital

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Isabela Yu

Impostora: Yellowface

  • Preço R$ 59,90 (352 págs.); R$ 39,90 (ebook)
  • Autoria R.F. Kuang
  • Editora Intrínseca
  • Tradução Yonghui Qio

Ao apontar uma lupa no universo das editoras em "Impostora: Yellowface", a autora sino-americana R.F. Kuang discute o espaço das escritoras racializadas na literatura. No centro da narrativa está o caso de plágio feito pela protagonista branca June Hayward do manuscrito da amiga morta Athena Liu, americana filha de pais chineses.

mulher asiática jovem com as mãos cruzadas e vestido preto com detalhes de flores vermelhas
A escritora sino-americana R.F. Kuang, autora de 'Impostora: Yellowface' - Jose Camacho/Divulgação

"O Último Front", a obra fictícia plagiada, fala da participação dos soldados chineses recrutados pelo Exército britânico durante a Primeira Guerra Mundial. Com diversos ajustes, o livro se torna um best-seller e leva Hayward ao estrelato.

Sem pudores, ela modifica o texto para não causar desconforto nos leitores. "Acho que deixamos o livro melhor, mais acessível, mais simples. A nova versão é uma história universal que inspira empatia, uma história em que qualquer um consegue se enxergar."

Para chegar ao topo das listas dos mais vendidos, ela dança conforme a música do marketing: adota a alcunha Juniper Song —sobrenome comum entre famílias coreanas—, retira as referências em mandarim, edita a violência da guerra e formata a história para agradar ao paladar da branquitude.

Em mais de uma ocasião, ela precisa esclarecer que não tem descendência asiática, só um nome riponga escolhido pela mãe. Mas a fama vem acompanhada de acusações de apropriação cultural e fúria das redes sociais.

Os usuários a acusam de "yellowface", adaptação ao contexto das pessoas amarelas —descendentes do leste asiático— do "blackface", prática racista em que pessoas brancas pintavam o rosto de tinta escura no teatro para interpretar negros.

Sem nenhuma conexão com a cultura chinesa, June é um peixe fora d'água na comunidade dos imigrantes nos Estados Unidos. Seu desprezo se expressa até no enjoo com o cheiro dos temperos e na constante demarcação do sotaque dessas pessoas.

A narradora arrogante agarra a farsa com unhas e dentes para não deixar de ser o centro das atenções. O imbróglio novelesco tem altos e baixos, e a escritora é abraçada por influenciadores ligados aos valores da direita que rechaçam questões raciais. "Athena estava com a vida ganha. Pessoas diversas, é só isso que o público quer", ela diz.

Mas no thriller satírico de Kuang, ninguém está a salvo das garras do capitalismo. Por meio de flashbacks, a faceta detestável de Athena Liu também é evidenciada. As escritoras se aproximaram por gostarem do livro "A Idiota", de Elif Batuman, e dividirem ambições literárias —desejavam se tornar a próxima Donna Tartt ou Jennifer Egan.

No primeiro ano da faculdade em Yale, June foi estuprada por um colega de classe e, após desabafar sobre o ocorrido, depara com a história publicada em um ensaio assinado por Athena na revista da universidade. O modus operandi segue ao longo da curta carreira da amiga, que se baseia no sofrimento de outras pessoas para compor seus livros.

Por mais que escrevesse sobre traumas da imigração, Athena não buscava transformações coletivas e não se importava em ser a única pessoa asiática da editora, se o silêncio era o preço de continuar sendo aceita nos espaços dominados por pessoas brancas.

A narrativa de "Impostora: Yellowface" traz mais perguntas do que respostas ao explorar o paradoxo da representatividade. De que adianta certos autores terem projeção se os estereótipos continuam sendo perpetuados?

Além de discutir a ausência de diversidade no mercado literário, a trama aborda as formas como as estruturas oprimem os escritores. Não há espaço para sutilezas na escrita de Kuang, que mimetiza os sentimentos à flor da pele dos debates virtuais.

Nessa ficção com doses de realidade, os personagens estão presos a seus arquétipos. As escritoras são narcisistas e moralmente questionáveis, a crítica literária segue a cartilha do politicamente correto e os agentes e editores buscam apenas o lucro.

Dentro do ecossistema tóxico construído na obra, cada participante tem seu papel na manutenção do status quo. Ainda que a escritora não consiga abraçar a complexidade do racismo nas páginas do livro, ela triunfa ao traduzir a insanidade do comportamento no ambiente digital.

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