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Jennifer Egan dribla distopia e didatismo em livro que fala da memória e da informação

Livro 'A Casa de Doces' retoma todo o universo de personagens e a forma radical do premiado romance 'A Visita Cruel do Tempo'

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Obra da artista Gerty Saruê Divulgação

São Paulo

Dona do Pulitzer de ficção com "A Visita Cruel do Tempo", de 2011, a escritora americana Jennifer Egan, de 60 anos, está de volta com novo livro, "A Casa de Doces", que segue explorando as mudanças nas relações humanas causadas pela tecnologia, sem demonizar esses avanços.

Ela repete a fórmula de sucesso da obra premiada e aposta na polifonia para contar histórias sob diversos pontos de vista e, assim, retratar fraturas sociais. "Minha melhor chance de capturar a vida americana no século 21 é deixar muitas vozes colidirem com a linguagem das mídias de massas", diz Egan, em entrevista.

A escritora Jennifer Egan, autora de 'A Casa de Doces' e 'A Visita Cruel do Tempo'
A escritora Jennifer Egan, autora de 'A Casa de Doces' e 'A Visita Cruel do Tempo' - Pieter M. Van Hattem/Divulgação

Sem repetir o personagem nem o tom de voz sob o holofote, tanto "A Casa de Doces" quanto o premiado "A Visita Cruel do Tempo", ambos lançados pela Intrínseca, são conduzidos por alguns figurões da trama, que dão vida a vários personagens.

No novo livro, voltam os produtores musicais Lou Kline e o pupilo ex-punk Bennie Salazar, assim como Sasha, ex-assistente cleptomaníaca de Bennie, figurinhas carimbadas de "A Visita Cruel". Conhecemos a juventude de Kline, na Califórnia enevoada de maconha dos anos 1960, e a mãe e o filho de Salazar, em pontos entre as costas leste e oeste dos Estados Unidos, ao longo das últimas décadas.

"Eu concebi 'A Casa de Doces' para que fosse sobre espaço, da mesma forma que 'A Visita Cruel' é sobre tempo." Segundo ela, a tecnologia é o motor de mudança na relação humana com o tempo e o espaço.

Em "A Casa de Doces", o inventor Bix Bouton começa o livro com um passeio inquieto por Nova York. Ele é dono de uma empresa de tecnologia, descrita como império de mídias sociais ao estilo do Facebook. Bouton é assombrado pela memória da morte do amigo Rob, vítima de afogamento no rio East, em Nova York, há 17 anos, em 6 de abril de 1993. A cena já ditava o ritmo de vários personagens de "A Visita Cruel do Tempo".

Na caminhada pela cidade, Bouton encontra um grupo de estudos da obra da antropóloga Miranda Klein, dedicado a etnografias de tribos brasileiras. Nesse grupo, conhece uma bióloga que estuda a externalização da consciência de animais.

"Eureca!" Ela aplica aqueles conhecimentos e inventa uma nova tecnologia —cubos capazes de armazenar e compartilhar a consciência e as memórias humanas. As informações podem ser espalhadas por um consciente coletivo ou vistas como um filme. Bouton poderia, finalmente, reviver, inclusive, a noite em que Rob morreu no rio.

Com claras implicações sobre privacidade, o dispositivo de Bouton retratado no novo livro não demora a desencadear uma revolução sociotecnológica. De quebra, a autora esbarra em problemas sociais que carimbam o século 21.

"É inevitável que questões sociais entrem no trabalho. Esse é o ambiente em que ele está sendo feito", diz Egan. "Mesmo que eu não esteja nomeando tais questões, meus interesses são formados pelo momento ao meu redor."

A autora, porém, não hesita em dar nome aos bois. Bouton é um homem negro, que sofreu racismo dos sogros texanos. A crise de opioides dos Estados Unidos aparece com personagens viciados e se cristaliza nos bairros de uma San Francisco gentrificada.

O que Egan se recusa a fazer, porém, é ensinar uma lição ao leitor. "O didatismo é a pior coisa que pode acontecer com a ficção", afirma. "Uma obra me perde no minuto em que sinto que está tentando me dizer o que pensar."

"A Casa de Doces", como "A Visita Cruel do Tempo", é um exercício de perspectiva movido pelo desejo de Egan de desdobrar o universo inaugurado no livro anterior.

Miranda Kline, a antropóloga autora dos algoritmos por trás das criações de Bouton, já foi Mindy, apenas mais uma das namoradas do poderoso produtor musical Lou Kline em "A Visita Cruel". Em "A Casa de Doces", descobrimos que ela larga as filhas sob cuidados duvidosos do pai para desenvolver suas pesquisas.

"Se entendemos que algum personagem é um babaca, não tenho interesse em reforçar, mas em ver de que formas ele não é um babaca", diz Egan. "Ficção é compressão. É sugerir o máximo com o mínimo. E não tem nada mais comprimido que uma oposição."

Fãs antenados da autora vão reconhecer outro dos capítulos, "Lulu a Espiã, 2032", famoso por ter sido publicado como uma série de tuítes, no perfil da revista New Yorker, há dez anos. Narrado como um manual de instruções de uma espiã em missão, é o ponto alto do radicalismo formal pelo qual Egan é conhecida.

A autora costuma ser considerada pós-moderna e comparada a autores como David Foster Wallace e Don DeLillo. Na visão dela, como para os pares, as formas arrojadas não são perfumaria. "A única maneira de fazer uma forma funcionar bem é se eu encontro uma história que não pode ser contada de outro jeito", diz.

Egan compara a história de Lulu a um capítulo escrito na forma de apresentação de PowerPoint no livro anterior. Para ela, inconcebível de qualquer outra forma. A narradora, uma menina de 12 anos, discorre sobre a vida familiar no deserto, com um irmão com traços autistas e uma obsessão por pausas na música.

Os pais dela são a ex-assistente do produtor Bennie e Drew, amigo do rapaz que se afogou no rio East. Como Bouton, eles são reféns da memória daquela noite e foram os primeiros a testar a invenção.

"É muito sentimental, mas em PowerPoint é mais tolerável. É difícil retratar a ação em PowerPoint. Você só consegue contar uma história em que pouco acontece. E é uma forma tão fria e corporativa, que compensa o sentimentalismo."

O projeto é ambicioso. E continua a dar certo em "A Casa de Doces", embora nem por isso dê menos trabalho. Egan jogou fora cerca de metade do material que redigiu.

"Sei dizer rapidamente se a forma está facilitando ou dificultando. Essa é uma pergunta crítica. Se me sinto restrita, é uma história que não quer ser contada daquela forma. Se as coisas parecem estar se abrindo, é bom. Mesmo assim, nem sempre funciona. Estar passável não é suficiente. Precisa estar muito bom."

A Casa de Doces

  • Preço R$ 79,90 (384 págs.); R$ 54,90 (ebook)
  • Autoria Jennifer Egan
  • Editora Intrínseca
  • Tradutora Débora Landsberg
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