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Ricardo Coimbra revê dez anos de tirinhas em livro que ilustra sua desorientação

Cartunista publica coletânea com trabalhos desde 2014, com retratos da virulência política e comportamental no Brasil

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São Paulo

Direita e esquerda, Jair Bolsonaro e Turma da Mônica, sionistas e cristãos radicais, Olavo de Carvalho e Ayrton Senna. É difícil encontrar quem escape do escrutínio de Ricardo Coimbra em "Desabamento Ornamental", coletânea de trabalhos publicados pelo cartunista nos últimos dez anos —muitos deles originalmente publicados na Folha, onde colabora desde 2017.

Mas o livro, que chega nesta sexta-feira pela Z Edições após uma bem-sucedida campanha de financiamento coletivo, é para o artista mineiro menos uma celebração da sua trajetória que um expurgo, uma espécie de lápide de um outro Coimbra.

ilustração de homem, cadeira e mesa caindo enquanto papéis em branco esvoaçam pelo ar
Ilustração do cartunista Ricardo Coimbra para a capa de seu novo livro 'Desabamento Ornamental', que reúne sua produção desde 2014 - Ricardo Coimbra/Divulgação

"Hoje o humor perdeu um pouco daquele romantismo de uma linguagem contra o poder. Ele foi apropriado pelas estruturas de autoritarismo, hoje você tem o ditador engraçadinho, o juiz, o publicitário, o jornalista engraçadinho. Tudo isso está embaralhado nesse material que foi doloroso de revisitar", diz o cartunista, que publicou também "Vida de Prástico" na mesma linha, em 2014, com cartuns desde 2009.

Pelas quase 200 páginas, num preto e branco cinzento que reforça a amargura e a autoderrisão, se desfolham registros do intenso agora, das manifestações de 2013 à pandemia, de retratos do furor despertado pela política na última década a críticas à precarização do trabalho e à virulência das redes sociais.

"Sou de uma geração de transição entre o analógico e o digital, e sempre prezei pela conversa com a pauta jornalística", afirma o cartunista. "Nesse livro, há muito da minha desorientação como cartunista e brasileiro. As pessoas acham que quem está nessa posição tem algum tipo de clarividência. Não é o meu caso. Há momentos bem embaraçosos."

Não que sejam menos atuais as piadas com a "esquerda festiva que se leva muito a sério", com a linguagem neutra em um "Natal desconstruídx" ou com a "badalhoca", uma onda de protestos que mergulha o Brasil em fezes e sangue.

Nessa empreitada, porém, Coimbra reconhece ter menos certezas sobre a liberdade de expressão. Se nesse meio-tempo ele acreditava que a esquerda havia entregado esta pauta no colo da direita, hoje reconhece matizes na discussão.

Retrato do quadrinista Ricardo Coimbra
O cartunista Ricardo Coimbra - João Saenger

"Essa questão se recolocou a partir da ascensão da extrema direita e da chamada guerra cultural", diz. "Temos de ficar atentos não só como ela é praticada, mas manipulada por quem quer fazer uma piada racista ou misógina. No fim das contas, como eu escrevo numa tirinha, ninguém gosta da liberdade de expressão."

Essa toada que pode parecer datada ao lembrar o leitor de figuras como a do ex-ministro Paulo Guedes e do ex-governador de São Paulo João Doria se mistura a outros trabalhos mais perenes, menos verborrágicos e pessimistas, como a história do Fofoqueiro Fantasma ou uma que liga Elena Ferrante e Kanye West até o comediante Paulo Gustavo disfarçado de Fernando Pessoa. Sacadas como essas deixam a leitura mais leve.

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Cartum de Ricardo Coimbra - Ricardo Coimbra/Folhapress

"O humor de verdade não pode ser previsível, ele te dá uma rasteira. Diferente do humor da propaganda, que não representa nenhum perigo", diz. "O único mérito que vejo na minha pororoca estética é de não respeitar nenhuma estrutura."

Nesse sentido, ele louva Laerte, veterana cartunista da Folha, por ter se reinventado nos últimos anos, e outros destaques das HQs como Simon Hanselmann e Josh Pettinger, que Coimbra acompanha pelo Instagram, e Fí —"que recupera a linguagem telegráfica do Jaguar." Nomes, em suma, que para ele cumprem a função de artistas, não de produtores de conteúdo. "São coisas totalmente opostas."

"O artista trabalha com o risco. Diria o Millôr Fernandes: 'Quem faz pesquisa de mercado é marca de sabonete'. O produtor de conteúdo quer engajamento, vender coisas. A equivalência dessas duas coisas é a maior armadilha da nossa época."

Desabamento Ornamental

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