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Paulo Roberto Pires

Millôr, que faria 100, foi individualista indomável

Ponto de vista próprio e insubmisso era inegociável para artista que imprimiu marca fortíssima na cultura do país

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'Poeminha tic-tac' (1980, caneta hidrográfica sobre papel), de Millôr Fernandes

'Poeminha tic-tac' (1980, caneta hidrográfica sobre papel), de Millôr Fernandes Arquivo Millôr Fernandes/Acervo IMS/Divulgação

Paulo Roberto Pires

Professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e colunista da revista Quatro Cinco Um. Editor da serrote, revista de ensaios do Instituto Moreira Salles, trabalha na biografia "Millôr do Princípio ao Fim", a ser publicada pela editora Todavia

[RESUMO] Millôr deixou como legado, mais que uma obra, uma marca autoral, escreve biógrafo. No centenário do humorista, na quarta-feira (16), o talento incomensurável que se espraiou por diversas manifestações culturais, o ceticismo, o individualismo, a insubmissão do pensamento e as contradições que marcaram sua carreira ainda despertam admiração e incômodo nos que encaram sua obra.

Millôr, a criatura, é resultado de variações virtuosas sobre um tema: um individualismo insubmisso e, acima de tudo, indomável.

Depois de sete décadas de trabalho árduo, Millôr Fernandes, o criador, se despediu em 2012 deixando menos uma obra no sentido tradicional do termo do que uma autoria. Uma assinatura ciclópica que nasceu no jornalismo e se espraiou por artes visuais, tradução, teatro, cinema e até música, imprimindo a cada ofício ou arte uma marca forte, fortíssima.

"Autorretrato", sem data, de Millôr Fernandes.
'Autorretrato' (sem data, nanquim e crayon sobre papel), de Millôr Fernandes - Arquivo Millôr Fernandes/Acervo IMS/Divulgação

"Não sou ligado a grupos, já disse que não me dou bem com classes, só com indivíduos", declarou ao Opinião, o combativo semanário de esquerda, em plena barra pesada de 1972. Talvez não fosse hora nem lugar propícios para dizer o que disse, mas seu horror ao coletivismo desde sempre falou mais alto. Contava que, quando jovem, preferiu a natação ao remo para não ter que coordenar movimentos com ninguém.

O ponto de vista próprio, peremptório, era inegociável para o homem que criou centenas de desenhos usando as letras do próprio nome —nome que, como se sabe, também foi inventado por ele, que leu "Millôr" na caligrafia arrevesada do tabelião que o registrou "Milton".

Assim como obteve, legalmente, a patente Editora do Editor para fustigar os amigos Rubem Braga e Fernando Sabino, donos da Editora do Autor, teria sacramentado em cartório a propriedade do derradeiro vocábulo do Aurélio só para garantir que, em discussões, teria a última palavra.

A proverbial assertividade foi decisiva para consagrá-lo como o mestre da frase lapidar, síntese fulgurante de ideia, impropério ou piada que nasce para se descolar do raciocínio e ganhar o mundo tão sozinha quanto seu autor. Não por acaso, o único de seus livros permanentemente em catálogo é "Millôr Definitivo – a Bíblia do Caos" (L&PM).

A edição de 1994 da antologia de si mesmo, gaiatamente batizada como escritura sagrada e, por isso, definitiva, reunia 5.142 frases (a conta é dele), às quais atribuiu, em subtítulo quilométrico, 62 sinônimos (a conta é minha). Pode-se considerar o que ali está como "preceito" ou "máxima", "obsessão" ou "despropósito", "tergiversação" ou "estultilóquio".

Fica por conta do freguês, grave ou frívolo, o sentido daquilo que, na capa da Bíblia, Millôr chama, tratando-se na terceira pessoa, de "dialética do irritante guru do Meyer".

Mesmo diante de sinais exteriores de sarcasmo e autoironia, não é raro que se exalte Millôr como um "filósofo brasileiro". Elogio ambíguo e enviesado, não de todo livre de viralatismo, que pretende buscar na chamada "alta cultura" o traço de distinção de um autodidata que se declarava jornalista antes de qualquer coisa. E se orgulhava de, ao longo da vida, ter a encomenda como maior inspiração.

Nas Redações que começou a frequentar adolescente, como contínuo —e onde um dia chegou a desmaiar de fome—, Millôr aprendeu inglês e desenho, experimentou conto e crônica, cometeu poemetos, inventou charadas e editou histórias de detetive. Nas idas e vindas entre o dicionário e a máquina de escrever, começou traduzindo balões de quadrinhos e, com menos de 20 anos, verteu para o português Pearl S. Buck, Nobel de Literatura. Logo viriam Shakespeare e Molière.

Ainda aos 19, inventou o mais longevo de seus pseudônimos, Emmanuel Vão Gôgo, que, de alguma forma, mostrava as continuidades e as rupturas entre trabalho braçal e criação artística, entre o chão de fábrica da Redação e as idealizadas alturas da reflexão.

"Eu botei Vão, tolo, idiota, e Gôgo, que é doença de galinha, boquirroto. Mais tarde, introduzi o Emmanuel na frente, que era de ‘Emmanuel Kant’". Desdenhando das interpretações intelectualizadas, voltaria a definir o personagem como "a fusão do altamente plástico (Van Gogh) ao altamente filosófico (Kant) através de um anamorfismo humorístico".

Essa complexidade foi percebida por Mário Pedrosa diante dos desenhos em bico de pena reunidos em 1957, no Museu de Arte Moderna do Rio, na primeira das três exposições individuais que Millôr fez em vida —nos anos 1980, recusou o convite de Pietro Maria Bardi para uma retrospectiva no Masp.

"O traço mais característico, talvez, de nossa época é a ambiguidade dos gêneros", escreveu o crítico, no Jornal do Brasil. "Millôr, ele mesmo se insinua no museu sob o passaporte de ‘humorista’, mas, na realidade, tem um olho sobre o aspecto plástico formal de seu desenho".

Em sentido mais amplo, o cultivo da ambiguidade está no cerne da paixão pelo contrário. Protagonista da Ipanema idílica, um dos mais persistentes clichês cariocas, Millôr também impunha limites à "ipanemia", tão difundida em seu nome, em frequentes voltas ao subúrbio da infância.

Em 1972, lembrava: "A cultura verdadeira que conheço pode até ser pobre, mas é a única que eu tenho: a cultura do Méier, bairro que compreende (duplo sentido) Vila Isabel".

Mais do que exercício nostálgico, vinculava-se assim a toda uma linhagem de criadores que, por verem a cidade a partir das margens, de esguelha, jamais tomaram como natural suas versões mais luminosas e edulcoradas.

A lista dos nascidos ou criados em Vila Isabel e Méier começa em Noel Rosa —ambos moraram na mesma rua, quando Millôr tinha 1 ano e Noel, 14— e segue com Nássara, que seria amigo e inspiração, Marques Rebelo e Nelson Rodrigues, chegando a Aldir Blanc.

Manifestação inequívoca de ego robusto, a insubmissão de Millôr tem origem sólida, distante do puro gosto pela ranhetice com que, às vezes, acaba sendo confundido. "Sempre cético, sempre individualista, não me engajava. Não por alienação: tinha indignação, era revoltado", diria ele, que nasceu profissionalmente nos estertores do Estado Novo e construiu parte fulgurante de sua carreira em refregas permanentes com a ditadura militar.

A posteridade não acolhe, no entanto, retificações. Não deixa de ser curioso que, na onda conservadora que se ergueu no Brasil na década passada, suas frases sejam cada vez menos citadas por progressistas. E muito frequentemente usadas como álibi intelectual de um tipo de conservador que reluta em se definir como tal e, em sua discreta onipotência reacionária, se acredita libertário.

Este Millôr é o que parece simplesmente desprezar a política —"esta revista será de esquerda nos números pares e de direita nos números ímpares", como escreveu no Pif-Paf— e até mesmo os seus pares —"o intelectual é a empregada doméstica dos poderosos".

Também tem público cativo os célebres arroubos machistas que provocaram as reações que mais o irritavam —"o melhor movimento feminino ainda é o dos quadris"— e o desprezo pela psicanálise —"psicanalista é um terapeuta que está sempre a favor da doença".

O sucesso do frasista é, queira ele ou não, o fracasso do contexto. O célebre dito de Millôr sobre liberdade de expressão —"Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos & molhados"— é hoje repetido a torto e a direito por aqueles que confundem isenção com jornalismo de campanha e independência com defesa do indefensável. Corajosa quando publicada no Pasquim, em pleno 1970, a frase soa pusilânime quando invocada por colunistas e analistas que, desde a volúpia lavajatista, tentam vender antiesquerdismo como isenção.

As muitas arestas de uma personalidade são o pesadelo de determinado tipo de biógrafo, aquele que confunde relato crítico de vida com hagiografia e magnifica as virtudes do personagem para atenuar suas faltas. No caso de Millôr, as incontáveis e espinhosas contradições só aumentam a complexidade e o interesse de um autor que raramente se abraça sem restrições.

"Eu nunca tive papel importante nas artes deste país, nem na literatura nem na política", escreveu Millôr, em estranha modéstia que, como logo se vê no arremate da frase, tem objetivo bem específico: "Mas na minha biografia, pelo menos, continuo a ser o personagem principal". Quem sou eu para o desdizer?

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