Leia trecho do livro 'Tropismos', de Nathalie Sarraute

NATHALIE SARRAUTE
tradução MARCELA VIEIRA
ilustração ZÉ OTAVIO

SOBRE O TEXTO O trecho integra o livro "Tropismos", de Nathalie Sarraute, que a Luna Parque lança em 24/3 na feira de poesia Desvairada. A escritora, que assina com um pseudônimo, é tida como uma das renovadoras da prosa francesa no século 20.

Crédito: Zé Otavio

À tarde elas saíam juntas, levavam a vida das mulheres. Ah! Como aquela vida era incrível! Iam aos "chás", comiam doces que escolhiam com delicadeza e certo ar de gula: bombas de chocolate, bolinhos e tortas.

O ambiente era como um viveiro barulhento, caloroso, alegremente iluminado e decorado. Elas ficavam lá, sentadas, apertadas em volta de suas mesinhas, e falavam.

Havia, em volta delas, um clima de excitação, de animação, uma leve inquietação cheia de felicidade, a lembrança de uma escolha difícil, sobre a qual ainda tinham dúvidas (aquilo combinaria com o tailleur azul e cinza?, mas claro, ficaria maravilhoso), a perspectiva de uma metamorfose, de uma evidência súbita de suas personalidades, de um brilho.

Elas, elas, elas, elas, sempre elas, vorazes, barulhentas e delicadas.

O rosto delas parecia marcado por alguma tensão interior, seus olhos indiferentes deslizavam sobre a aparência, sobre a máscara das coisas, analisavam-na por um instante (aquilo era bonito ou feio?), depois deixavam-na cair novamente. E os disfarces davam a elas um brilho duro, um frescor sem vida.

Elas iam aos chás. Ficavam lá, sentadas durante horas, enquanto tardes inteiras desapareciam. Elas falavam: "Entre eles acontecem cenas lamentáveis, discussões sem motivo. Acho que nessa história é dele que tenho pena. Quanto? Mais ou menos dois milhões. E sem falar da herança da tia Josephine"¦ Não... Como você queria que fosse? Ele não vai se casar com ela. Ele precisa de uma mulher que cuide da casa, ele não está se dando conta disso. Mas eu estou te falando. Ele precisa é de uma mulher que cuide da casa... Que cuide da casa... Que cuide da casa..." Sempre disseram a elas coisas daquele tipo. Elas sempre ouviram falar de coisas assim, elas sabiam: os sentimentos, o amor, a vida, eram essas suas especialidades. Isso lhes pertencia.

E elas falavam, incessantemente, repetindo e girando as mesmas coisas, depois girando-as novamente, de um lado, depois do outro, moldando-as, moldando-as, enrolando sem parar entre os dedos aquela matéria ingrata e pobre que tinham extraído de suas vidas (aquilo que elas chamavam de "vida", suas especialidades), moldando essa matéria, esticando-a, enrolando-a, até que ela não passasse de um montinho entre seus dedos, uma pequenina bola cinza.

NATHALIE SARRAUTE (1900-99), pseudônimo de Natacha Tcherniak, escritora e advogada francesa nascida na Rússia, é autora de "Os Frutos de Ouro" (Nova Fronteira).

MARCELA VIEIRA, 34, tradutora, compõe o núcleo editorial da "Revista Fevereiro".

ZÉ OTAVIO, 33, é ilustrador.

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