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Adilson Paes de Souza e Gabriel Feltran

Nova lei das PMs, que uniu bancada da bala e PT, é pior que decreto da ditadura

Projeto que espera sanção de Lula politiza as corporações, reduz controle externo e impulsiona Estado policial

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Adilson Paes de Souza

Doutor em psicologia escolar e do desenvolvimento humano e pós-doutorando em psicologia social pela USP

Gabriel Feltran

Professor titular da Sciences Po (Instituto de Estudos Políticos de Paris) e diretor de pesquisa no CNRS (Centro Nacional da Pesquisa Científica da França). Autor, entre outros livros, de "Stolen Cars: a Journey Through São Paulo's Urban Conflict"

[RESUMO] A recém-aprovada Lei Orgânica das Polícias Militares é resultado de uma articulação particular entre o bolsonarismo raiz e o governo petista, que patrocinou sua tramitação no Senado e se recusou a ampliar o debate junto à sociedade civil. Autores argumentam que a proposta é ainda mais autoritária que o decreto-lei sobre o tema editado pelo regime militar depois do AI-5 por concretizar o avanço de uma hipermilitarização que libera as polícias de controles indispensáveis em uma democracia.

A Lei Orgânica das Polícias Militares (LOPM), que aguarda sanção do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), é tratada por seus defensores como uma atualização da legislação vigente para que as PMs se adequem ao regime democrático. O que está em curso, no entanto, é justamente o oposto. Seguramente, a proposta não está sendo debatida como deveria. Talvez não esteja mesmo sendo notada.

O projeto foi aprovado na Câmara em dezembro de 2022, com relatoria do deputado bolsonarista Capitão Augusto (PL-SP) e apoio da bancada da bala. Encaminhado ao Senado, ganhou prioridade em um acordo de bancadas e contou com atuação favorável do ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, indicado ao STF (Supremo Tribunal Federal). O senador Fabiano Contarato (PT-ES) se tornou relator do projeto, e o texto foi aprovado sem debate, por acordo de líderes.

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Policiais militares durante operação em Guarujá, no litoral de São Paulo - Danilo Verpa - 31.jul.23/Folhapress

Entidades da sociedade civil tentaram fazer com que o tema fosse discutido no Senado, mas todos os esforços nesse sentido foram rechaçados pelo governo. Uma união sui generis entre o bolsonarismo raiz e o governo atual, portanto, fizeram a lei caminhar.

A nova lei orgânica guarda o espírito —e muitos trechos literais— de nada menos que o decreto-lei 667, de 1969, a norma editada para transformar a ação das polícias militares em polícias políticas logo depois do AI-5. Agora sob uma fachada democrática e sem nenhuma oposição, porque patrocinada por um governo que seria progressista, a lei mimetiza a organização policial do período mais pesado da repressão militar.

O projeto de lei aprovado no Congresso determina que as PMs responderão como força auxiliar do Exército e prescinde das secretarias estaduais de Segurança Pública, além de fazer desaparecer a autonomia das ouvidorias. Na prática, as PMs passam a ser muito mais autônomas politicamente.

Livres de controle, interno ou externo, as PMs poderão, por exemplo, "produzir, difundir, planejar, orientar, coordenar, supervisionar e executar ações de inteligência e contrainteligência" (artigo 5º, inciso XI), o que permitiria criar órgãos semelhantes ao Dops (Departamento de Ordem Política e Social) e marchar sobre as competências atuais das polícias civis e da Polícia Federal.

Os problemas da LOPM são muito mais numerosos. É sabido que, em 1969, o decreto-lei 667 foi editado para que as polícias atuassem como auxiliares diretos da função político-militar de guerra contra inimigos internos do regime. Se sancionada, a nova lei orgânica permitirá que as PMs façam o mesmo sob a justificativa de guerra ao crime —aos criminalizados, sejam eles quem forem.

Há coincidências assustadoras entre a LOPM e o decreto-lei 667. Os detalhes de redação são ardilosos: a norma da ditadura passou por uma espécie de harmonização facial para ganhar uma aparência mais jovem, uma "cara de democracia". A redação da nova lei finge eliminar dispositivos do decreto original, mas reproduz seus conteúdos à risca.

Além disso, o texto revoga farsescamente alguns trechos explicitamente polêmicos do decreto 667 para, em seguida, reinseri-los na LOPM com uma redação mais vaga e contemporânea. "Evitemos a resistência", devem ter pensado seus formuladores.

Vejamos algumas "novidades" da LOPM:

a) a atuação da PM como "força auxiliar e reserva do Exército", que constava no artigo 1º do decreto-lei 667, foi revogada, mas retornou fielmente no artigo 2º da nova lei;

b) a manutenção da Inspetoria Geral das Polícias Militares, comandada por general de brigada da ativa que constava no artigo 2º da norma da ditadura voltou à LOPM em seu artigo 28;

c) a estruturação interna das PMs (órgãos de direção, de execução e de apoio), que constava no artigo 5º do decreto-lei de 1969, retornou à LOPM em seu artigo 7º;

d) a organização da hierarquia das PMs, de coronel a soldado, que constava no artigo 8º, revogado, voltou à nova lei em seu artigo 12; uma hierarquia idêntica à do Exército foi, dessa forma, reproduzida na estrutura das PMs.

Há também pontos que não foram nem disfarçados nesse procedimento estético. No artigo 3º do decreto-lei 667, constava que as PMs serviriam para a manutenção da ordem pública e segurança interna. Na LOPM, a palavra manutenção é substituída por preservação, enquanto segurança interna é substituída por segurança pública (artigo 2º), além do policiamento ostensivo.

Ora, não existe compatibilidade entre o papel de polícia em uma democracia e em um regime militar. Essa incompatibilidade, no entanto, não será sequer notada pelo público. A militarização política da polícia repete, agora como farsa, a tragédia da ditadura.

Outros pontos da LOPM merecem destaque: o artigo 2º define as PMs como instituições militares permanentes, organizadas com base na hierarquia e disciplina militares. O adjetivo militar é enfatizado.

No que se refere às diretrizes da organização (artigo 4º), se preveem cooperação e compartilhamento recíproco de experiências entre os órgãos da segurança pública (inciso IX), instituição de bases de dados online e unificadas por estado da federação (inciso XII) e compartilhamento de seus bancos de dados e demais sistemas de informação (inciso XVII).

Se desejáveis do ponto de vista técnico, essas diretrizes desafiam o federalismo e criam um problema enorme. Quem coordenará e controlará a decisão dessas polícias? Não há menção ao Ministério da Justiça. As polícias controlam a si mesmas ou o Exército as controla.

Em relação à competência das PMs (artigo 5º), se nota uma enorme expansão do militarismo policial sobre as competências de outros órgãos e áreas do Estado. Por exemplo, sobre o ensino e a pesquisa: "Recrutar, selecionar, formar seus membros militares e desenvolver as atividades de ensino, extensão e pesquisa [...] por meio do seu sistema de ensino militar" (inciso XIV).

O atual sistema de ensino das PMs e das Forças Armadas está fora do alcance da LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional). A LOPM prevê que "o Poder Executivo federal editará decreto com a definição de parâmetros mínimos para [...] os cursos de formação, habilitação e aperfeiçoamento", que conterão "as disciplinas de direitos humanos e polícia comunitária" (artigo 34).

Não se menciona quem editará o decreto ou quem realizará o acompanhamento e a avaliação do que for implantado. Serão as próprias PMs por meio do "seu" sistema de ensino?

A LOPM reforça o caráter exclusivista e excludente do ensino das polícias: as competências do MEC ficam para o resto do mundo educacional e de pesquisa, enquanto as PMs têm autonomia para ensinar e pesquisar o que quiserem. Liberdade acadêmica para as polícias, talvez nenhuma para os pesquisadores das universidades, chamados de pseudo-especialistas.

Em relação à segurança de trânsito, a nova lei inclui entre as atribuições das PMs "exercer, por meio de delegação ou convênio, outras atribuições para prevenir e reprimir atos relacionados com a segurança pública" (artigo 5º, inciso VI). O que isso significa? Interdição de vias? Autorização para a realização de eventos em vias públicas? A redação é vaga, permitindo que arbitrariedades políticas encontrem amparo legal.

No que diz respeito à fiscalização ambiental, a LOPM inclui as competências de "exercer, por meio de delegação ou convênio, outras atribuições na prevenção e na repressão de atividades lesivas ao meio ambiente" (artigo 5º, inciso VIII) e de aplicar sanções (inciso VII). As PMs poderão julgar recursos ambientais além de lavrar autos de infração ambiental? Poderão conduzir o licenciamento ambiental? Quem controlará essas atividades?

Nas entrelinhas, a ideia é que ninguém controle, mesmo porque não são previstas transparência e prestação de contas à sociedade.

Em relação à realização de eventos e atividades em locais públicos, a lei prevê que caberá às PMs emitir manifestação técnica sobre a realização de atos (artigo 5º, inciso XVI). As corporações poderão proibir a realização de manifestações ou protestos em vias públicas? Poderão proibir a realização de determinadas manifestações culturais? Infelizmente, parece que sim. Temos presenciado a criminalização do funk e do hip hop, por exemplo, há anos. Com a sanção da lei, haverá amparo legal para isso.

A falta de transparência das polícias ganha legalidade na nova lei, que autoriza a subordinação direta das ouvidorias aos comandantes-gerais das PMs (art. 10, parágrafo 8º). Norberto Bobbio definiu a democracia como o governo do poder público em público, em que a transparência é a regra. Esse dispositivo da LOPM é o oposto disso e cria um risco grave para a democracia.

O artigo 7º, por sua vez, estabelece a subordinação direta das PMs aos governadores. Abre-se a possibilidade de não haver mais uma Secretaria de Segurança Pública e, com isso, a eliminação de mais uma instância de controle e o agravamento da relação com as polícias civis.

Em relação ao efetivo das corporações, a LOPM restringe a participação de mulheres ao estabelecer cota de 20% de vagas em concurso públicos e não faz menção à comunidade LGBTQIA+. Ao reforçar que as PMs são integradas por membros militares (artigo 11), a lei exacerba mais uma vez o militarismo.

Estamos diante de um hipermilitarismo que combate os esforços civis para democratizar a segurança pública, reforçando a rota que nos trouxe à tragédia atual da segurança pública brasileira.

Depois de estudar seu conteúdo, fica nítido que a LOPM vai além do decreto-lei do regime militar. A hipermilitarização das corporações tem intenções políticas bastante evidentes: a autonomização das PMs de qualquer controle civil ou democrático, deixando aberta a possibilidade de sua utilização política nos estados e na União. Como uma lei aprovada em tempos de democracia pode ser ainda mais autoritária que uma norma editada no auge repressivo da ditadura?

Se a lei não é boa para a sociedade, tampouco é boa para os policiais. Pesquisas sobre a incidência de suicídio entre policiais revelam que seu adoecimento psíquico pode ser decorrente mais de fatores organizacionais que de fatores operacionais. Por exemplo, protocolos baseados em uma cultura autoritária e concentração da tomada de decisão, típica de uma estrutura militarizada, com menor reconhecimento e valorização do policial.

O treinamento de policiais voltado não para servir a população, mas para combatê-la, abre espaço para que superiores tomem decisões arbitrárias ao avaliar seus subordinados, determinem escalas de trabalho excessivas e imponham relações interpessoais abusivas. A hipermilitarização, impulsionada pela LOPM, se insere em uma realidade laboral precária e pode se tornar um fator preditivo de suicídio entre policiais, fenômeno que vem se agravando.

Apesar disso, a lei foi aprovada nas duas casas do Congresso por votação simbólica, em acordo de líderes. Na Câmara, o Partido Novo foi o único que votou contra o projeto, possivelmente só para marcar sua oposição ao governo.

Testemunhamos esforços de entidades da sociedade civil junto ao governo Lula, alertando para os riscos presentes no projeto e pedindo mais diálogo e transparência no processo legislativo. O Executivo se recusou a promover esse debate.

Como explicar que parlamentares ditos progressistas e o atual governo federal, igualmente dito progressista, tenham apoiado incondicionalmente esse projeto, que evidentemente tem todos os traços da extrema direita? Uma barganha para a aprovação de outras pautas, consideradas mais relevantes para o governo, parece ser a resposta.

A LOPM é antidemocrática e autonomiza e politiza as PMs, enquanto finge fazer o oposto, e exacerba a hipermilitarização, reduzindo sensivelmente a transparência e o efetivo controle da sociedade e, sobretudo, dos governos eleitos sobre os grupos armados estatais.

Além disso, amplia os limites da atuação das PMs, que poderão se sobrepor às competências de outros órgãos do Estado, em um evidente avanço da militarização estatal, inclusive em atividades de educação e pesquisa. A nova lei aponta para o avanço da precarização da investigação policial, já que as PMs poderão avançar sobre as prerrogativas das polícias civis e federal.

Se sancionada por Lula, como indica que será, a LOPM semeará a criação de um Estado policial e militarizado que terá amparo legal para esgarçar ainda mais a nossa já combalida democracia.

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