[SOBRE O TEXTO] O trecho nesta página é parte de "Sobre Isto", longo poema escrito pelo russo de dezembro de 1922 a fevereiro de 1923, quando ficou isolado em seu apartamento após uma grave discussão com Lília Brik, sua amante. A íntegra da obra será publicada pela primeira vez no Brasil em agosto, pela Editora 34.
Petição endereçada a...
Peço-lhe, camarada químico,
preencha o senhor mesmo!
Ancora a arca.
. . . . . . Raios, para cá!
Cais.
. . . . . . Ei!
. . . . . . Jogue um cabo!
E acabo
. . . . . . de sentir com os ombros
o peso dos peitoris de pedra.
O sol
. . . . . secou a noite do dilúvio com seu calor.
Na janela,
. . . . . . . . encontro o dia com ardor.
Do globo somente — o monte Kilimanjaro.
Do mapa africano somente — o Quênia.
O globo é uma cabeça calva.
Eu sobre o globo
. . . . . . . me englobo de dor.
O mundo
. . . . . . . gostaria
. . . . . . . . . . . . . de patabraçar os peitos-montanhas
neste monte de dor.
Para que dos pólos,
. . . . . . . por todas as moradias,
role a lava pétrea-derretida,
é assim que eu gostaria de cair no choro,
urso-comunista.
Meu pai
. . . . . . . é um nobre de quatro costados,
a pele das minhas mãos é terna
Talvez,
. . . . . . . beba os dias com versos num trago,
e sem nunca ter visto um torno.
Mas com a minha respiração,
. . . . . . . . . . . . . . com as batidas do coração,
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . com a voz,
com cada ponta de cabelo
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . arrepiado de medo,
com os buracos das narinas,
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . com os pregos dos olhos,
com os dentes arreganhados na rosnadura ferina,
porcoespinho a pele,
. . . . . . . com as sobrancelhas unidas em ira,
com um trilhão de poros,
. . . . . . literalmente --
. . . . . . . . . . . . . com todos os poros
no outono,
. . . . . . . no inverno,
. . . . . . . . . . . . . . na primavera,
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . no verão,
de dia,
. . . . . . . no sono
não aceitarei,
. . . . . . . . . . . . . . odeio isto
tudo.
Tudo
. . . . . . o que em nós
. . . . . . . . . . . . . está cravado pelo passado de escravidão,
tudo,
. . . . . . enxame mesquinho,
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . entranhado no dia-a-dia
até no nosso
. . . . . . . regime bandeirrubro.
Não darei o gostinho
de ver
. . . . . . que calei meus versos com um tiro.
Não cantarão tão cedo
o réquiem ao meu talento.
Podem me matar
. . . . . . . . . . . . . emboscada na esquina
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . com uma faca talvez.
Os D'Anthès não mirarão a minha fronte.
Quatro vezes envelheço — quatro vezes
rejuvenesço,
até que a morte me apareça defronte.
Onde quer que eu morra,
. . . . . . . . . . . . . morrerei cantando.
Em qualquer buraco enterrado,
sei —
. . . . . . com mérito estarei deitado.
com os tombados sob a bandeira vermelha.
Mas seja qual for a minha sorte —
. . . . . . . a morte é a morte.
Terrível — não amar,
. . . . . . . terror — não ousar.
Por todos — uma bala,
. . . . . . . por todos — uma faca.
E para mim,
. . . . . . . . . . . . quando será minha vez?
. . . . . . E para mim o quê, então?
Talvez,
. . . . . . . lá nas profundezas da infância,
encontrarei
. . . . . . . . . dez dias suportáveis.
E eles?!
. . . . . . . Queria o mesmo destino para mim!
Mas não.
. . . . . . . Vejam —
. . . . . . . . . . . . . . não tenho a mesma sorte!
Se eu acreditasse no além!
. . . . . . . Fácil viagem experimental.
Basta
. . . . . . . apenas estender a mão —
a bala,
. . . . . . . num piscar de olhos,
. . . . . . . . . . . . . traça retumbante o caminho mortal.
O que posso fazer,
. . . . . . . . . . se eu
. . . . . . . . . . . . . . com toda a pressão,
com a plenitude do coração,
nesta vida,
neste
. . . . . . . mundo
. . . . . . . . . . . . . . tinha
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . e tenho fé.
Vladimir Maiakóvski foi um poeta e dramaturgo russo (1893-1930).
Letícia Mei é tradutora e mestre em letras pela USP.
Power Paola é uma cartunista e ilustradora equatoriana.
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