Descrição de chapéu Memorabilia

Última obra de Duchamp está viva em minha imaginação, diz artista

Regina Silveira escreve sobre trabalho de Marcel Duchamp hoje exposto no Museu da Filadélfia

Regina Silveira

Em meados dos anos 70, estudei a obra de Marcel Duchamp (1887-1968) com afinco, movida por admiração e muita curiosidade.

De um lado, apreciava seu uso livre e irônico das normas da perspectiva e o papel que lhe atribuía, ao dizer que só ela devolveria à pintura a inteligência que havia perdido; de outro, aprendia muito com seu engajamento —também paródico— no lado mágico e quase alucinatório das anamorfoses e fantasmagorias maneiristas.

Caderno de anotações do artista Marcel Duchamp detalha a montagem da obra em fotos e instruções escritas 
Caderno de anotações do artista Marcel Duchamp detalha a montagem da obra em fotos e instruções escritas  - Keiny Andrade/Folhapress

Mas a obra que sempre se manteve mais viva em minha imaginação é seu último trabalho, "Étant Donnés: 1- La Chute d'Eau; 2- Le Gaz d'Éclairage" (sendo dados: 1- a queda d'água; 2- o gás de iluminação), montagem que realizou minuciosamente e em silêncio por cerca de 20 anos (de 1946 a 1966). Hoje, pode ser visitada no Museu da Filadélfia, onde a remontaram depois de sua morte, em 1968.

Apenas no final dos anos 80 pude ver a obra pela primeira vez. Numa das salas reservadas à coleção do artista, o "Étant Donnés" está instalado ao lado do "Grande Vidro", a conhecida obra/compêndio de Duchamp.

Instruída por reproduções e descrições, eu sabia o que veria quando espiasse pelos dois orifícios feitos na velha porta de madeira, de formato comum na Espanha rural: uma cena ilusionista em que uma figura feminina, despida e estranhamente real, segura uma luminária acesa enquanto está caída sobre gravetos, em uma paisagem que tem ao fundo uma cascata diminuta, em discreto movimento luminoso.

Também já havia lido, em entrevista de John Cage, que a distribuição dos elementos teria sido feita sobre um chão revestido com um padrão quadriculado, similar a um tabuleiro de xadrez —o que avançava minha suposição de uma elaborada construção perspectivista, na qual o espectador devia ocupar um ponto de vista especifico como condição da ilusão tridimensional.

Expert nesse tipo de recurso, Duchamp certamente conhecia os interiores arquitetônicos das pequenas caixas ópticas do século 17, nas quais o chão quadriculado tinha a função de dimensionar a profundidade e as distorções que a visão fixa pelo orifício deveria corrigir.

Quando finalmente alcancei os furinhos da porta, não consegui ver o chão, escondido pelos elementos construídos em cima dele. Concluí que a quadrícula era apenas um recurso prático para localizar as partes da montagem da obra. Foi um pequeno alerta que abalou minhas firmes convicções prévias.

Tive que reconhecer, frente à cena pela primeira vez, que o impacto maior vinha de sua nitidez absurda, fartamente iluminada. Seria "Étant Donnés" uma hiper-realidade?

Suspeitei que aquilo que via não era a cena montada diretamente atrás da porta, mas seu reflexo concentrado num espelho —ou jogo de espelhos— sabiamente colocado por Duchamp. Só isso poderia oferecer imagens com aquele grau de condensação e nitidez! Agora eu precisava descobrir onde o artista havia colocado os espelhos...

A ajuda para sair deste labirinto interpretativo veio do próprio caderno de anotações de Duchamp, que o Museu da Filadélfia editou como fac-símile mais de 15 anos depois da integração de "Étant Donnés" à coleção, conforme havia sido acordado com o autor.

O manual é um arquivo de folhas soltas, com minuciosas instruções manuscritas, planos desenhados e fotos. Seu conteúdo é apenas técnico: ensina detalhadamente como montar e desmontar a obra e descreve todos os seus componentes, sem aludir às intenções do artista.

Visão da obra “Étant Donnés: 1- La Chute d’Eau; 2- Le Gaz d’Éclairage” através de orifício em porta de madeira que compõe sua estrutura
Visão da obra “Étant Donnés: 1- La Chute d’Eau; 2- Le Gaz d’Éclairage” através de orifício em porta de madeira que compõe sua estrutura - Keiny Andrade/Folhapress

Munida de um exemplar —que conservo até hoje—, procurei em todas as páginas os detalhes que haviam movido a minha curiosidade. Encontrei fotos do chão quadriculado, com as devidas marcas para pousar no lugar certo a mesa com o fragmento de manequim e a paisagem. Mas não achei qualquer indicação dos supostos espelhos...

Percebi então que a mágica do manual era a revelação da incrível e precária parafernália que Duchamp juntou atrás da porta de madeira. Foi o que fez mudar totalmente minha relação com a obra.

As estratégias envolvidas nos fakes cuidadosamente elaborados pelo artista tomaram minha imaginação: no fundo fotográfico da paisagem, ele acoplara um céu que é um pedaço de vidro com nuvens de algodão; na cascata, além do movimento garantido por um motorzinho escondido atrás da mesa, era possível controlar seu falso brilho pela inclinação de uma barra metálica presa a uma velha caixa de biscoitos.

Similar a um pequeno palco, a fantástica construção duchampiana atrás da porta espanhola conta até com cortinas —uma branca e outra preta— para dirigir toda a intensidade luminosa à figura nua, tornada pivô de um forte acontecimento fictício que nunca deixei de imaginar.

Em resumo, o mistério é a própria narrativa alegórica, aberta, surpreendente e complexa que Duchamp faz chegar ao olho do espectador como uma fantasmagoria hiper-real.

"Étant Donnés" é de fato um trabalho conclusivo, como queria o artista. Gosto muito de pensar nos 20 anos utilizados na sua execução e no refinamento de ideias e escolhas que esse tempo lhe permitiu —enquanto se pensava que Duchamp passava seus dias apenas jogando xadrez...


Regina Silveira é artista plástica.

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