Descrição de chapéu Memorabilia

Teatro deixa sensação de incompletude constante, afirma Nachtergaele

Em depoimento, ator diz que sente ter ficado devendo a "Woyzeck", que montou duas vezes

Matheus Nachtergaele

Vejo a dramaturgia como um quadro sobre o qual o ator coloca suas tintas. Algumas vezes na vida, tive a alegria de receber uma tela em branco na qual pude fazer uma pintura incrivelmente rica, conseguindo falar não só de mim, mas também do nosso tempo.

São textos que, mesmo antigos, permitem ao ator entrar em contato vivo com a contemporaneidade. Isso aconteceu comigo no "Livro de Jó" e no "Auto da Compadecida", e é muito claro no encontro —constantemente incompleto— do artista que sou com "Woyzeck", do alemão Georg Büchner.

Conheci a peça em 1990, aos 22 anos, quando saí do Centro de Pesquisa Teatral do Antunes Filho, que foi muito importante na minha formação. Cibele Forjaz me convidou para uma oficina que culminaria numa montagem de "Woyzeck" com jovens atores. O espetáculo foi apresentado por dois meses no estacionamento do Cineclube Elétrico.

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Matheus Nachtergaele em cena de "Woyzeck, o Brasileiro", em 2003, no Sesc Belenzinho (SP) - Lenise Pinheiro/Folhapress

Eu fazia um personagem secundário, Andrés, e era a primeira vez que eu entrava em cartaz. Minha felicidade era plena. E naquela equipe encontrei meus pares: anos depois, fundamos o Teatro da Vertigem.

Os anos se passaram, fiz grandes personagens no teatro, mas aquele texto me perseguia. Eu sentia que alguma coisa ainda precisava ser feita nele e, mais de dez anos depois, propus a Cibele reencontrar aquela peça. Conseguimos reunir parte da equipe antiga e ficamos imersos naquele material ao longo de uns quatro meses, em 2002.

 

Durante esse trabalho, percebi que havíamos entendido muito pouco da obra naquela primeira montagem, nos nossos 20 anos. É claro que intuímos muita coisa —e Cibele era uma diretora de pesquisa com "P" maiúsculo—, mas talvez a questão fosse a própria incompletude característica do material.

Büchner morreu aos 23 anos, antes de concluir o texto, então não se sabe o rumo ou a estrutura que lhe daria. É uma peça aberta, as cenas nem sequer são numeradas. Existe uma ordem consagrada pelos estudiosos do autor, e tínhamos uma versão desmembrada do material: a diretora sorteava as cenas e o destino escolhia a ordem do espetáculo.

A peça é baseada nos autos do processo de um personagem real, um soldado que matou a puta que sustentava. O personagem vive massacrado por seus superiores, mas devolve a violência que sofre em Maria, sua amante, e não neles.

Foi a obra que inaugurou o teatro expressionista alemão: Woyzeck é um herói trágico que, pela primeira vez na dramaturgia mundial, não tinha o destino traçado pelos deuses, e sim por sua classe social. E é isso que acontece nas casas mais pobres, nos subúrbios, ainda hoje. Existe um respeito histórico e estranhíssimo a uma hierarquia injusta.

Nessa nova montagem, eu levava um tempo longo esfaqueando a Marcélia Cartaxo toda noite, algo muito violento para mim e para a plateia. Fizemos a morte da sua personagem de forma parecida com a do irmão do Zé Celso, Luís Antônio Martinez Corrêa, que levou muito mais facadas do que eram necessárias em seu assassinato. Era uma violência dirigida a algo além da vítima.

"Woyzeck" é como um "Hamlet" destroçado. O protagonista tem ambições típicas do personagem de Shakespeare, presságios filosóficos profundos e, ao mesmo tempo, incapacidade cultural para abarcá-los. Ele pressente o trágico, mas não tem palavras para dizê-lo —algo que eu não tinha percebido com clareza na época da segunda montagem.

Essa incomunicabilidade pela origem social era uma camada funda, que eu apenas tateava em 2002, e que faz de "Woyzeck" uma das peças mais urgentes hoje.

A distância que criamos entre nós é abismal: há gente pensando na exploração de outros planetas e gente rezando para um Deus velhinho de barbas brancas. É como se fossem duas espécies que o capitalismo forçou a coexistir.

Gostaria de explorar mais isso se pudesse voltar à peça: a sensação de ter plena capacidade de vislumbrar as maravilhas e os horrores do mundo, como qualquer ser humano, mas não ter dinheiro, tempo ou linguagem para se expressar.

Tenho um projeto concreto para o cinema, de procurar onde estaria Woyzeck no Brasil hoje. Acredito que se deva buscar por ele no último lugar da escala hierárquica capitalista. Ele pode ser o próprio brasileiro original, o índio, em confronto com uma grande cidade.

Quando digo às pessoas que tenho a sensação de que ainda fiquei devendo ao personagem, acham absurdo. Mas creio que meu sentimento de incompletude é com o teatro como um todo. Na maioria das vezes, uma temporada se encerra por questões práticas: abandona-se o papel por pressões externas, não porque ele acabou.

Pensar de novo sobre Woyzeck anos depois de encontrá-lo permanece estimulante. É um personagem que, como todos os grandes, tem horizontes de continuidade. Dele já se tem uma memória, mas por ele ainda existe um desejo. 


Matheus Nachtergaele, ator, venceu cinco troféus APCA por seu trabalho em cinema, TV e teatro; está em cartaz em SP com ‘Molière’ até 29/7.

Depoimento a Walter Porto

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