Com radicalismo e sem diálogo, Brasil corre risco de abandonar democracia

Autores analisam possíveis consequências aumento do sentimento antidemocrático no país

Fabio Giambiagi Paulo Tafner

[RESUMO] Autores analisam as possíveis consequências do crescimento da belicosidade e do sentimento antidemocrático na sociedade brasileira.

 

A crise das democracias vem sendo comentada há muitos anos, e fenômenos como o acirramento das tensões nos EUA de Donald Trump; o fortalecimento de regimes de viés autoritário em países como Rússia, Hungria ou Filipinas; ou os recorrentes problemas sociais na América Latina, fizeram recrudescer esse tipo de reflexão.

Uma análise mais profunda do tema mostrará que são situações diferentes. De um lado, os EUA dificilmente deixarão de ter o sistema de "checks and balances" que marca esse país há cerca de 250 anos. De outro, nem Filipinas, nem Hungria nem muito menos a Rússia têm um passado expressivo de democracia a ser defendido, uma vez que regimes de força estiveram presentes em boa parte do século 20.

Quanto à América Latina, as situações são muito díspares. Vão desde as saudáveis práticas democráticas de Chile, Uruguai e Colômbia, até a tragédia venezuelana —e agora também a nicaraguense.

Aqui no Brasil, não estamos lidando com um sentimento, como dizem os franceses, de "malaise" ou da tão argentina mufa que com frequência afeta o humor dos "hermanos". Estamos falando de algo muito concreto: o que será de nós no resto de nossas vidas?

Concretamente, de uma dúvida que passou a frequentar a mente —o que temos vergonha de pensar— sem que seja dito a não ser em sussurros: nossa democracia tem salvação? Ou, colocando as questões de outra forma: ela merece ser salva? Há muita gente que começa a suspeitar que não. E isso é profundamente grave.

mãos, colheres, black blocs e policiais
Colagem - Alex Kidd

A base da sobrevivência de uma democracia é a legitimidade do eleito. A taxa de participação nas eleições nos EUA pode ser baixa, mas nenhum americano sairá por aí a defender que um punhado de tanques adentre pela Casa Branca para depor o presidente, quem quer que seja ele.

Os britânicos podem não estar muito felizes com seus últimos governos, mas a ninguém passa pela cabeça que o ocupante de Downing Street seja outro que não um parlamentar escolhido pelo mesmo sistema que levou à escolha dos governantes da Grã-Bretanha nos últimos séculos.

Em contraposição a isso, nós —e aqui cabe o plural, porque foi uma construção coletiva— criamos no Brasil um sistema com uma combinação singular, que envolve quatro características:

1) Uma democracia com instituições que funcionam livremente e limitam bastante o poder do presidente da República.

2) Um grau extremo de fragmentação política, com mais de 30 partidos, dos quais 25 com representação parlamentar.

3) Sistemas falhos de controle, que prejudicam em demasia os bons administradores, mas não previnem o Estado contra a má gestão. A sucessão de escândalos —sempre descobertos a posteriori— é um exemplo flagrante disso, com a corrupção espalhada entre todos os níveis e esferas de governo e em todos os grandes partidos.

4) Uma exacerbação do dissenso, em detrimento da prática do diálogo com vistas à construção de consensos.

No conjunto, o efeito que a combinação desses quatro elementos exerce sobre a vida cotidiana é deletério.

A tragédia argentina de hoje tem suas raízes nos anos 1970. Talvez a melhor indicação do grau de radicalismo da sociedade argentina naqueles tempos fosse o fato de que o hino da União Cívica Radical —o partido de centro por excelência no país— dissesse que a sigla "se rompe, pero no se dobla" (se quebra, mas não se dobra), enquanto a candidata a terceira legenda na época de Perón, sob liderança de Oscar Alende, tivesse como nome "Partido Intransigente".

A ideia de que a política deve ser o exercício da rigidez e da inflexibilidade, presente simbolicamente naquelas palavras, explica muito do espírito ainda tão presente na Argentina. Há um fio condutor que leva dos conflitos fraternais e sangrentos retratados na obra de Osvaldo Soriano, naqueles anos, às reflexões amargas de um Juan José Sebrelli ou de um Jorge Fernández Díaz nos dias de hoje.

Um Brasil sem conversa

No Brasil, mesmo nos anos 1970, a conversa civilizada que existia entre cultores do diálogo, como Célio Borja ou Nelson Marchezan, de um lado, e Tancredo Neves, Ulysses Guimarães ou Paulo Brossard, de outro, tinha correspondência nos modos da sociedade.

Não raras vezes, batidas leves de carro na zona sul naquela época acabavam como conversas de velhos amigos entre os motoristas envolvidos no episódio. Esse país pertence ao passado. Nos últimos anos, o Brasil sofreu um processo profundo de "argentinização" da política e da sociedade. A crispação é evidente na rua, e, na política, o objetivo passou a ser a demonização do outro. O diálogo brilha pela ausência.

Em certa medida, a realidade atual dá certo sabor de fracasso à nossa democracia. Afinal, depois de anos de arbítrio, a redemocratização prometeu entregar justiça social, crescimento econômico e um país com menos privilégios e sem impunidade —enfim uma sociedade mais justa, mais rica e menos desigual.

Foram feitos, é verdade, avanços institucionais, mas o fato é que ficamos amarrados à armadilha do lento crescimento econômico e à incapacidade de produção de uma democracia mais substantiva.

colheres e planalto
Colagem para a Ilustrissima - Alex Kidd

Há, entre nós, a nítida percepção de que o país apresenta graves problemas de eficiência e justiça. Do ponto de vista da economia, destacam-se os reduzidos níveis de poupança e de investimento; a baixa produtividade; a enorme informalidade da atividade empresarial e das relações de trabalho; os precários incentivos aos investimentos; o ainda reduzido acesso ao crédito; e a injusta, ineficiente e elevada carga tributária, da ordem de 35% do PIB.

Sob a ótica da eficiência social, apesar de ligeira melhora, a desigualdade de renda permanece bastante elevada; temos ainda transferências injustificáveis entre estratos de renda —seja pelos enormes subsídios ou pelo sistema de Previdência— e há insuficiente prestação de serviços públicos essenciais, como educação, saúde e justiça, com uma preocupante eclosão de violência urbana e certa desagregação da solidariedade social.

No campo institucional, houve melhoras em algumas áreas, mas o Brasil tem ainda problemas de toda sorte: nossas agências reguladoras foram capturadas por interesses políticos, partidários e econômicos com nomeações que constrangem o corpo técnico. Nosso sistema partidário é motivo de piada: temos três dezenas de partidos e ninguém se sente representado.

Nenhum dos "gigantes" tem mais de 12% da Câmara e pouco mais do Senado. Além disso, vemos todos os dias baixa fidelidade e troca de legendas, em flagrante desobediência à vontade expressa nas urnas.

O Judiciário não garante acesso equânime à Justiça e mostra-se incapaz de proteger direitos de propriedade. A ineficiência da Justiça provoca grandes distorções de acesso efetivo, pois frequentemente desestimula e penaliza os que dela mais precisam. Essa é a razão pela qual se cristaliza em torno dela um sentimento generalizado de descrença.

Sem fazer a contento o que lhe cabe, o Judiciário tem se pautado diversas vezes ou por um vago "princípio de justiça social" que desrespeita a legislação; ou pelo ímpeto legislativo, ampliando de modo indevido sua competência constitucional.

Para piorar esse quadro, anos de irresponsabilidade fiscal e populismo produziram um cenário desolador: milhões de desempregados, milhares de empresas fechadas e ausência de oportunidades para os jovens —que cada dia mais, no caso daqueles que podem, deixam o país em busca de uma vida mais promissora.

Enfim, a realidade reforça diariamente a percepção do cidadão comum de que nossa democracia não tem produzido resultados efetivos. E, quando se desconfia da democracia, o risco é enorme: a radicalização, o populismo e a falta de senso semeiam em terreno fértil.

O diálogo é a melhor saída para toda essa crise. Por quê? Porque a chance de a democracia acenar ao país com um futuro próspero sem que haja esse entendimento é nula.

Não somos os EUA, onde mesmo com um impasse entre o Executivo e o Legislativo, o país pode andar sozinho porque as instituições funcionam. Nem a França, onde Macron tem uma ampla maioria que lhe permite praticamente aprovar o que quiser. Nem a Bélgica, que, mesmo com um Congresso muito dividido, a rigor não precisa aprovar nenhuma lei fundamental para que quem ali vive continue a tocar a vida com confiança.

"O que nos reserva o futuro?" Essa é a pergunta que começa a ser formulada cada vez mais e com mais angústia nos mais diversos lares do país.

Nas residências de quem pode ter a chance de migrar, porque a reflexão pode ser o prenúncio de decisões difíceis, que podem dividir famílias, amargurar vidas, truncar carreiras, desfazer amores.

Na grande maioria dos que não têm essa alternativa à mão, pela dissipação do pouco de previsibilidade que a vida parecia reservar a essas pessoas, substituída pelo medo: do desemprego, do aviltamento das condições de vida, da piora contínua do bem-estar, do sentimento de falta de justiça.

Mesmo com todos os nossos problemas, que nunca foram poucos nem pequenos, com toda a carga de analfabetismo no passado, de miséria etc., o Brasil foi uma terra de progresso.

O filho do nordestino analfabeto que veio para o Sudeste em meados do século passado teve acesso a certa educação e deu ao avô um neto que hoje segue uma carreira técnica que lhe permite ganhar R$ 2.500 ou R$ 3.000 por mês. O tetraneto de um escravo hoje pode ser um advogado.

Mesmo nas décadas difíceis posteriores a 1980, houve, em linhas gerais, progresso. Quem ganhava salário mínimo em 1990 aos 20 anos hoje tem uma filha que ganha dois salários mínimos em um contexto em que a remuneração tem um poder aquisitivo de duas vezes e meia o que tinha no passado.

Hoje, porém, quando essa filha tenta ver o futuro, mais do que algo triste, enxerga algo feio, ruim —ou, pior, não enxerga nada.

Um corpo doente

"O que nos reserva o futuro?" Tentemos estressar esse raciocínio. Sabemos o que era a Venezuela em 1998: um país normal, em alguns aspectos mais avançado do que o nosso, com uma classe média expressiva, onde as pessoas faziam seus planos, tinham seus sonhos, tocavam a vida.

Hoje é um país em que falta tudo, com uma inflação descontrolada, onde a população literalmente emagreceu em todas as classes sociais pelas dificuldades da vida cotidiana e com níveis de violência altíssimos. Milhões migraram, sem esperanças.

Não se chegou a isso da noite para o dia —e sim como resultado de um populismo brutalmente irresponsável e de uma desordem progressiva. E, cabe registrar, a ausência de ordem, a partir de certo ponto, deixa de ser desordem para se transformar em barbárie.

Não estamos ignorando que as instituições no Brasil são mais fortes que as da Venezuela nem a presença de elementos políticos que esperemos que aqui não se façam presentes, mas não nos enganemos: a "venezuelização" do país é um dos cenários possíveis.

Quando um corpo fica doente —como está a democracia brasileira— fenômenos internos começam a ser acionados. Anticorpos entram em funcionamento.

Nesse contexto, o clamor pelo "restabelecimento da ordem" conquistará, mais e mais, corações e mentes. Não estamos aqui manifestando um desejo: nenhum dos autores deste artigo tem nem um passado associado a essas ideias —pelo contrário— nem a menor simpatia pela hipótese. Estamos apenas fazendo análise política.

No final da década passada, era possível dizer que a democracia tinha nos dado mais liberdade, o fim da alta inflação e a virtual eliminação da pobreza.

Dez anos depois, porém, se a caminho do começo da próxima década, a população sentir que 35 anos de democracia terão gerado a paralisia da economia, mais de 60 mil assassinatos por ano e houver a percepção de que o retorno da inflação alta é uma questão de tempo, a tese de que a democracia terá fracassado começará a se disseminar.

"As instituições são fortes", dirão alguns. "Não somos uma republiqueta", dirão outros. "Esses tempos passaram", pensará a maioria. Pode ser. O problema é que diante da desordem e da crise econômica prolongada, apelos populistas e/ou autoritários ganham espaço na vida política do país. Não se pode dissociar a eleição de líderes autoritários da Europa do século passado, ao flagelo do desemprego, da desordem social e da hiperinflação.

É aqui que os desdobramentos se tornam mais dramáticos. Estamos convencidos de que são poucos os casos de brasileiros que desejam um regime autoritário. Porém, muitos cidadãos comuns têm a sensação de que nossa democracia não é substantiva; e muitos empresários estão exasperados pela desordem de toda ordem.

Muitos brasileiros estão cansados de nossa democracia não substantiva. Falta-nos uma elite —em seu sentido mais amplo— que transmita as bases morais nas quais nossa sociedade possa se assentar.

Não é mais aceitável que políticos "vendam" votos por cargos; que empresários troquem valores éticos pelo ganho fácil; que partidos negociem tempo de TV ao invés de disseminarem e lutarem por ideias. Não é mais aceitável que candidatos mintam para ganhar eleições. Temos todos que evitar os radicalismos que estão tornando nossa democracia insalubre.

Se as alternativas de uma "venezuelização progressiva" ou de uma "saída autoritária" são o que se poderia denominar de "suicídio em slow motion", resta às forças democráticas e modernizantes, que entendem que não há futuro para o país fora da vigência das regras do capitalismo, no mundo globalizado de hoje, se colocarem de acordo e definir linhas de ação, para além de eventuais diferenças, que permitam que o próximo governo consiga transitar pelas dificuldades que terá que encarar, para chegar a 2022 em condições melhores que as atuais.

Nessas circunstâncias, o diálogo entre essas forças se impõe. Vetos mútuos não são uma opção, já que, em caso de prevalecerem, nos conduzirão a algum dos cenários polares descritos acima. O Brasil não merece esse destino. 


Fabio Giambiagi, economista, é autor de diversos livros sobre economia brasileira e especialista em finanças públicas.

Paulo Tafner é economista e pesquisador da Fipe/USP. 

Alex Kidd é artista gráfico.

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