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Alice Carvalho explode em fúria para viver heroína de 'Cangaço Novo'

Atriz potiguar, 27, se mostrou furacão dramático no papel de Dinorah, única mulher de gangue de assaltantes do Nordeste

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Mulher suja de terra olha para o horizonte

Alice Carvalho em cena da série 'Cangaço Novo' Amazon Prime Video/Divulgação

Paula Soprana
Paula Soprana

Editora do DeltaFolha

[RESUMO] Hiperativa desde a infância em Parnamirim, na Grande Natal, Alice Carvalho mobilizou suas explorações artísticas pregressas e enfrentou uma preparação física intensa para interpretar Dinorah, o trabalho de maior projeção da sua carreira até aqui. Em "Cangaço Novo", a atriz se revela hábil em canalizar seu furacão interno na medida certa e partir da revolta para expressar a personalidade de uma sobrevivente da pobreza, do abandono e de abusos.

Quando Alice Carvalho viu sua interpretação em "Cangaço Novo" pela primeira vez, pegou o telefone, atônita, e ligou para o diretor Aly Muritiba. "Meu Deus do céu, você está louco? Como me deixou fazer isso?"

Ficou impressionada com sua voz. Seu corpo estava grande. A atuação estava "dilatada, acima do tom". Bateu no rosto de Thainá Duarte, que interpreta Dilvânia, sua irmã muda e inofensiva. Cuspiu na comida de Ubaldo, seu outro irmão, interpretado por Allan Souza Lima. "As pessoas vão me odiar, Aly."

Alice ficou desconcertada ao se enxergar porque a principal emoção que guiou a construção de sua personagem foi a raiva, e a raiva carrega certo descontrole. Ela bem poderia ter ficado caricata com tanto ódio, agressão e palavrão, mas a potiguar de 27 anos se mostrou um furacão dramático, capaz de comover o mais apático dos espectadores neste que é o papel de maior projeção de sua carreira até agora.

A atriz Alice Carvalho, revelação do elenco da série 'Cangaço Novo' (Amazon Prime Video) - Eduardo Knapp/Folhapress

Em "Cangaço Novo", que estreou em agosto no Prime Video, dirigido por Muritiba e Fábio Mendonça, Dinorah Vaqueiro é a única mulher de uma gangue de assaltantes de banco no interior do Ceará (a série foi filmada em outros locais do Nordeste).

Nos primeiros episódios, nenhum bandido tem traço de mocinho, com cenas de crueldade que miram o prazer individual, como quando invadem e se adonam por dias da casa de uma família pobre e trabalhadora, matando a única cabra leiteira para fazer um churrasco. No meio do bando de selvageria, Dinorah tem sua primeira insurgência. Dá uma surra em um dos aliados ao perceber que ele estuprou a menina da casa.

A partir daí, aparecem as gradações de sua personalidade, uma sobrevivente de diferentes tipos de agressão: pobreza, abandono, abuso. Já pelo meio da temporada é convencida pelo namorado, Lino, a um escape lúdico no açude. Ao som de "Espumas ao Vento", na voz de Fagner, eles namoram, brincam, ela boia na água. São, enfim, cenas de paz. Até entrarem em rota com o inimigo mais tarde.

Os próximos parágrafos contêm spoilers.

O parceiro de Dinorah é alvejado num tiroteio e morre em seu colo, enquanto ela dirige às lágrimas uma caminhonete, cortando a paisagem do sertão. "Espumas ao Vento" volta a tocar, tornando-se, tal qual numa novela, a música-tema do romance. A voz não é mais de Fagner, mas da própria Alice Carvalho.

(A cena é uma homenagem a "Terra Estrangeira" (1995), de Walter Salles, em que Fernando Alves Pinto morre no colo de Fernanda Torres. Também foi a última gravação de Alice no sertão, portanto o choro continha uma dupla despedida.)

Alice é multiartista. Atua, canta, toca sanfona, escreve roteiro, crônica, dirige, produz e faz até o marketing do produto se precisar. Escreveu os livros "Do Amor — e Algumas Crônicas" (2015) e "A Princesa Empoderou" (2018), um conjunto de contos e crônicas publicadas em veículos de Natal. Dirigiu clipes do BaianaSystem. Estudou artes visuais na Universidade Federal do Rio Grande do Norte e se diz kamikaze, adepta do método imersivo de interpretação. Suas múltiplas explorações artísticas sempre convergem para aperfeiçoar seu trabalho final, de atriz, sonhado desde a infância em Parnamirim, na Grande Natal.

A série foi exibida pela primeira vez no Festival de Gramado (onde Alice também estreou em "Angela", sobre o assassinato de Ângela Diniz por Doca Street, no qual tem um papel secundário, mas não pouco expressivo). Com uma recepção positiva do público e da crítica, começou a se convencer de que sua personagem não fora odiada e tampouco estava canastrona, seu maior pavor.

"Acho que geralmente passo a primeira metade de qualquer série, filme, peça, muito insegura. Do meio para o fim, desligo a voz do meu generalzinho e os trejeitos saem naturalmente", diz. "Me critico muito e rola uma leve sabotadinha, mas não fico nessa energia de me dar tamanha importância a ponto de não me permitir escorregar."

"Cangaço Novo" é um "Mad Max" sertanejo, e Alice, que até então não tinha interpretado uma ação, precisou fazer uma preparação intensa, que iniciou seis meses antes do período oficial, por vontade dela. O roteiro dizia algo como "aparição de costas; Dinorah, 25, ombros talhados em madeira maciça".

Em Parnamirim, dividiu a semana em diferentes modalidades de exercícios. "Comecei a levantar peso, pensei ‘isso aqui vai me dar um resultado rápido, vou ter resistência para, sei lá, segurar a arma do tamanho que precisar, segurar um corpo, vou segurar essa onda’", lembra.

Além do peso, fez nogi (jiu-jitsu sem quimono), hipismo, aula de tiro e de motocicleta. "Tenho um primo que é mestre de muay thai e daí eu falei assim: 'Ó, acabou, eu vou te pagar uma grana e você não vai dar aula para mais ninguém, só vai trabalhar comigo, e a gente vai treinar quatro, cinco vezes por semana'". Ela ainda caiu num nicho de vídeos do YouTube e passou madrugadas assistindo a profissionais de educação física e nutricionistas comentando o treinamento de atores de filmes de super-herói. "Usei pouco dublê", orgulha-se.

Alice poderia ser o oposto de Dinorah, como sua próxima personagem, uma sanfoneira tímida e introspectiva na novela "Guerreiros do Sol", com estreia prevista para 2024 na Globoplay. Não é o caso.

Suas reações são explícitas, vivazes. Dá respostas longas, como quem gosta muito de compartilhar. "A gaiatice tem muito mais a ver comigo." Ela expressou gaiatices na série, como quando solta um "aí, porra, não tem nem água pro cara tomar" diante de uma longa fila de pessoas que esperam sob o sol o atendimento em um cartório.

Criada com dez irmãos (nisso incluem-se primos que cresceram com ela), Alice gosta de viver em bando e assim viveu durante as gravações na pandemia, que tiveram 105 diárias divididas com os irmãos Vaqueiro, Thainá Duarte e Allan Souza Lima, entre as cidades de Cabaceiras, no Cariri paraibano, e Parelhas, no Seridó potiguar.

Os Vaqueiro criaram um pacto de irmandade fora das câmeras e se obrigaram a viver como irmãos. Durante a preparação de elenco, também combinaram de "nunca brigar", já que Dinorah e Ubaldo vivem em conflito direto até o terceiro episódio.

"Quando a gente tinha esses embates muito difíceis nas filmagens, nem conversávamos de manhã. ‘Vai à merda e não fale comigo porque eu te amo e não vou trocar uma palavra com você senão não vou conseguir te odiar, então saia de perto de mim’", dizia Alice a Allan, ou Dinorah a Ubaldo.

Ubaldo é o primogênito dos três filhos do falecido líder do cangaço. Deixou o Ceará ainda criança após presenciar a morte dos pais. Cresce em São Paulo e retorna à terra por uma herança, na tentativa de custear a saúde do seu pai de criação.

Logo se envolve no crime, contra a vontade de Dinorah, que não tolera sua presença. Exonerado do Exército e ex-bancário, vira o cérebro do bando. O playboy de São Paulo torna-se o anti-herói após um longo discurso em que se reconhece como parte do sertão e com o sangue de Vaqueiro.

"Essa é uma cena que Fabinho [o diretor] ama muito. Tem um sentimento forte para ele porque era finalmente a chegada desse cara no sertão, o reconhecimento. Mas tinha alguma coisa que não estava fazendo sentido, e eu estava com medo de falar. Daí eu disse: 'Fabinho, você não acha que está muito sudestino explaining?’."

Dinorah interveio e sugeriu uma reação no roteiro quando confrontada por Ubaldo. Combinou isso com Allan, um traço de seu fino caráter de irmã. "Se eu improvisasse sem combinar naquela cena, que era a cena dele, pareceria que eu estava querendo chocar o ator. Não seria a irmã dialogando com o irmão."

Com emoção, Ubaldo fala por quase dois minutos, convence os aliados de que agora é um cangaceiro como eles e, de Dinorah, só recebe um profundo cuspe acompanhado de um marrento "Foda-se!".

A produção tentou fugir de alguns clichês óbvios associados ao Nordeste, desde a busca por paisagens pedregosas e de lajeado ante a paisagem laranja até o cuidado com os sotaques. "Também mexeram com essa ideia de ‘sotaque nordestino’ que o povo fala. Usou-se trazendo atores de vários lugares, da Bahia, de Pernambuco, porque ‘sotaque nordestino’ não é uma coisa homogênea, são vários convivendo", diz a atriz.

O historiador Durval Muniz de Albuquerque, autor de "A Invenção do Nordeste" (1994), reprovou a tentativa. Em crítica no jornal Diário do Nordeste, escreveu que o produto exibe o passado e que reforça "a ideia de atraso, rusticidade, violência, associadas ao Nordeste", que estaria, segundo a série, ainda entregue "à lógica patriarcal, senhorial e aristocrática do sangue, dos vínculos misteriosos e atemporais traçados pela hereditariedade, tudo isso contraposto a São Paulo, o lugar da verdadeira contemporaneidade".

"Óbvio que eu sabia que Durval não iria gostar, era óbvio", diz Alice, sorrindo. "Acho muito importante esse tipo de debate para o fortalecimento do pensamento crítico, mas jamais deixaria de fazer um papel pensando no que diriam. É claro que essa série era um risco, mas eu tinha muita confiança no poder da história, e a história tem uma coisa muito bonita que dialoga com a origem sertaneja de um dos criadores [ Eduardo Melo, autor da série em parceria com Mariana Bardan], cuja família migrou para São Paulo."

Alice está morando no Rio de Janeiro para gravar a novela da Globoplay. Filha de mãe solo e criada pelos avós, um professor e uma cabeleireira, cresceu rodeada de tios e primos num conjunto habitacional popular de trabalhadores do estado. Além dos três tios de sangue, tem um quarto de coração, acolhido na casa dos avós dela, o maestro e multi-instrumentista Antônio de Pádua Carvalho.

"Foi um dos meus maiores incentivadores. Eu era muito hiperativa, fazia muito esporte, e um dia ele chegou lá em casa e ouviu que eu dava muito trabalho, que não parava quieta na escola. Respondeu que talvez minha questão fosse muita necessidade de expressão. ‘Compra uma flauta doce para essa menina, deixe ela mexer num violão…'"

Outro mentor de sua iniciação artística foi Neemias Damasceno, o professor de artes do colégio (ela é grata por ele salvá-la de expulsões). Para Damasceno, hoje com 51, Alice "só esticou de tamanho, é a mesma até hoje". Era conhecida pelos professores por sua eletricidade: "Chegava sempre suada, vivia correndo". Na sua concepção, o que "resolveria" tamanho dinamismo daquele corpo seria o teatro.

Damasceno dirigiu a primeira interpretação de Alice, quando ela tinha mais ou menos 10 anos. Não era uma oficina de teatro, mas uma aula regular de artes da escola, daquelas que os alunos ensaiam para uma apresentação anual aos pais. Tratava-se de uma peça sobre Chronos e Kairós, história da mitologia grega a respeito do tempo. Alice interpretou Kairós, "o tempo da poesia, da liberdade, da arte, como deveria ser", lembra o professor.

"A menina era um absurdo, gente. Com 9, 10 anos, tinha uma maturidade corporal impressionante. Intuitivamente, sabia deixar o tom da voz dentro do texto, o ritmo, o tempo do corpo, passava a emoção na medida. Ela fez um personagem vivo, era foda, eu ficava de queixo [caído]", diz.

Em 2021, Alice formou-se em artes visuais. Em seu trabalho de conclusão, honra familiares, orixás, a ancestralidade de preta potiguar e os governos de esquerda "que possibilitaram à família Carvalho o direito de ter mais um membro se formando em uma instituição federal".

Apaixonou-se por performance, arte contemporânea e videoarte. Escreveu para teatro e queria aprender roteiro para o cinema. "Eu precisava fazer a bola para poder jogar, entende? Não tenho ou não tinha, sei lá, um perfil desejado pelo que eu entendia de audiovisual brasileiro." Fez vários testes e sempre batia na trave.

Distante do eixo Rio-São Paulo, centro do showbiz nacional, Natal tem espaços de resistência, especialmente no teatro, com grupos de longa data, como o Facetas e Mutretas e o Clowns de Shakespeare, que integraram a formação de Alice. O Clowns atua há mais de 30 anos, com espetáculos em diversos países e um estímulo constante à formação artística por meio de oficinas de interpretação, das quais ela participou.

Titina Medeiros, 46, atriz egressa do Clowns e que integra "Cangaço Novo" (é a advogada dos Vaqueiro), se impressiona com a capacidade de Alice em criar as próprias oportunidades —ela sabe que é preciso disposição extra quando não se nasce em São Paulo ou no Rio.

"Ela não é uma potiguar que nasceu no Rio Grande do Norte e foi logo cedo para Rio de Janeiro e São Paulo. Ela é uma artista potiguar. Ela é forjada aqui, se construiu artista aqui. E o que eu acho mais incrível é que Alice funda o terreno dela, não espera ser chamada."

Titina refere-se, por exemplo, à "Septo", uma websérie disponível no YouTube que Alice idealizou em 2015, quando estava na faculdade, em parte porque precisava ter portfólio. A série, que tem um quê juvenil com temática LGBTQIA+, ganhou prêmios em Buenos Aires, no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Norte, além de indicações em outros festivais.

Alice interpreta Jéssica, uma jovem lésbica em processo de autodescoberta. A história se entrelaça com a de Alice, que enfrentou dificuldades para se assumir aos 17 anos. Sua avó reprovou à época, mas hoje é assunto superado.

Outra ficção que se mistura com sua realidade é a peça "Inkubus", um monólogo autoral que trata de violência física e psicológica. Assim como Dinorah Vaqueiro, Alice foi vítima de abuso na infância.

Ela demorou um pouco para entender de que parte do seu íntimo construiria a cangaceira. A preparadora Fátima Toledo a incentivou a tirar as máscaras ao invés de colocá-las. "A gente começou o processo devagarinho, eu via meu corpo esquentando, minha voz saindo, estava muito forte, me sentia um Taz [o personagem do desenho do Looney Tunes, um diabo da Tasmânia que devora o que vê pela frente e se move em forma de tornado]."

Alice resolveu parte do seu trauma infantil com arte e terapia. Dinorah, com tiro, violência e morte. "Quando entendi o que tinha acontecido com Dinorah, encontrei o lugar da revolta, o lugar de ‘eu não quero te perdoar, eu quero é que você morra!’. Eu não criei essa raiva, eu experimentei essa raiva, ela está em mim."

Assim como em Kairós aos 10 anos, Alice canalizou seu Taz na medida certa, com toda a explosão de fúria que ela e Dinorah mereciam colocar para fora.

Cangaço Novo

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