Nova Constituinte deveria tratar apenas de modelo político, diz autor

Fabio Feldmann, que foi deputado constituinte em 1988, diz que Carta espelhou preocupações da época

Fabio Feldmann

[RESUMO] Autor afirma que Carta de 1988 espelhou preocupações da redemocratização e defende a convocação de uma nova Assembleia para tratar de temas como pacto federativo e sistema político.

placar constituinte
Ilustração - Ana Elisa Egreja

Nos próximos dias, haverá a comemoração dos 30 anos da Constituição Federal de 1988. Tempo suficiente para que se faça um balanço do seu real significado para a sociedade brasileira, em que pesem controvérsias no que tange a sua extensão: a Constituição trata de matérias que vão da República até normas relativas a relações familiares, de modo que hoje temos um direito constitucional que abrange repertório enorme. 

A convocação da Assembleia Nacional Constituinte se deu como última etapa do processo de redemocratização no Brasil. À época, a grande discussão tinha como ponto central dar poderes constituintes ao Congresso Nacional ou convocar de uma Constituinte autônoma com uma eleição específica para a escolha de seus membros. 

Prevalecendo a primeira alternativa, tivemos uma Constituinte que, pela primeira vez em nossa história, não se baseou em um projeto prévio. 

A tentativa de se transformar a Comissão Arinos em uma instância capaz de apresentar um projeto para a Constituinte e o país não foi bem-sucedida por, basicamente, não possuir o indispensável requisito de legitimidade. 

Desse modo, a Assembleia Nacional Constituinte gozou de absoluta autonomia para a elaboração da Carta, ainda que tenha se inspirado no texto Arinos e, especialmente, nas constituições da Espanha de 1978 e de Portugal de 1976. 

Hoje, entendo que foi uma opção adequada e, com isso, exigiu maior tempo para sua elaboração. Aliás, um dos grandes vetores de pressão sobre a Assembleia foi o de que seus trabalhos se encerrassem o quanto antes para que o país pudesse “voltar aos trilhos”. 

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O ex-deputado constituinte Fabio Feldmann - Danilo Verpa - 10.fev.2016/Folhapress

Nasceu, nesse parto, a Constituição Cidadã, como definiu à época Ulysses Guimarães. Ela teve como objetivo principal redesenhar a cidadania dos brasileiros. Nesse sentido, foi inegavelmente generosa, abrindo caminho para avanços que vieram logo a seguir em termos de novos direitos e fortalecimento de diversas instituições que hoje são indispensáveis. 

O Sistema Único de Saúde é um desses exemplos, além do direito dos consumidores, fortalecido pelo Código do Consumidor (1990). Na área ambiental, um capítulo foi criado para contemplar o tema e uma série de dispositivos fundamentais encontram-se em todo o texto constitucional, como considerar como função social da propriedade o respeito ao meio ambiente e a utilização adequada dos recursos naturais. 

A Assembleia Nacional Constituinte atendeu demandas daquele momento e foi influenciada pelas circunstâncias de então. Não foi possível, assim, adotar um dispositivo que proibisse a discriminação por orientação sexual nem se cogitou tratar dos transgêneros, pelo simples fato de que ainda era um assunto incipiente. 

A Constituição americana, por tratar basicamente da relação entre a União e os estados federados (pacto federativo), da relação entre os Poderes e da representação política na Câmara e no Senado, sofreu poucas e importantes emendas. 

Por sua vez, ganhou a Suprema Corte Americana um enorme papel, cabendo-lhe decisões paradigmáticas sobre aborto, integração racial, controle de gases efeito estufa e muitas outras. Pelo seu papel, a composição da Corte é objeto de amplo debate e disputa em função das posições sobre os temas controvertidos por parte de seus candidatos. 

No Brasil, apenas recentemente o Supremo Tribunal Federal passou a ser conhecido, e hoje surgem novos temas como a vitaliciedade dos ministros versus mandato e a autonomia das decisões monocráticas versus colegiado. Até mesmo a transmissão das sessões tem sido objeto de polêmica na sociedade. 

Mesmo reconhecendo os grandes avanços e a importância da Constituição Federal de 1988, é inegável que temas fundamentais para o Brasil deixaram de merecer tratamento adequado. 

E isto por uma única razão: a Assembleia Nacional Constituinte espelhou as principais preocupações da época, cujo repertório não incluía os grandes temas atuais: a representação política, o sistema eleitoral, a organização dos partidos políticos e qual o pacto federativo razoável em termos de atribuições designadas à União, estados e municípios e seu respectivo financiamento.

papéis voando no plenário
Ilustração - Ana Elisa Egreja

Embora desde a década de 1970 o país viva uma realidade metropolitana, ainda existe um déficit expressivo das regras de governança sobre a relação entre estados e municípios.

Os exemplos são conhecidos: a distribuição desigual da representação da população na Câmara dos Deputados e a crise fiscal pela qual passamos, que exige repensarmos o sistema tributário nacional, bem como o financiamento das atividades públicas e governamentais. 

Neste particular, é bom lembrar que nesses últimos 30 anos houve um incrível aumento da carga tributária sem que o cidadão tenha como retribuição uma boa qualidade de serviços públicos. 

Quer dizer que as reformas necessárias terão que ser feitas em um espaço relativamente reduzido para que venham a obter a legitimidade necessária.

O caminho das emendas constitucionais empregado nos últimos 30 anos tem enfrentado dificuldades pelo fato de que criamos um presidencialismo de coalizão, no qual o Executivo forma maiorias provisórias. Isso se deve, inclusive, ao fato de que na Constituinte caminhávamos para o parlamentarismo e, por questões meramente circunstanciais, venceu o presidencialismo. 

Como consequência, temos na Constituição Federal instrumentos típicos do sistema parlamentar, como a medida provisória, que tinha como objetivo substituir o decreto-lei. Este era considerado típico dos regimes autoritários pelo fato de que criava situações jurídicas no momento de sua edição. 

Mas, se compararmos os dois instrumentos, a medida provisória é revestida de um caráter mais drástico. 
O maior equívoco da Constituição Federal de 1988 talvez tenha sido o de não prever revisões de tempos em tempos, com exceção daquela que se realizou, parcialmente, em 1993.

Esta, relatada pelo deputado Nelson Jobim, tratou de poucos temas, como a admissão da dupla cidadania e a redução do mandato presidencial, sem promover grandes alterações até porque faltou à revisão legitimidade por parte da sociedade e apoio parlamentar.

É oportuno olharmos a recente experiência americana com a eleição de Donald Trump, que demonstra que, mesmo em democracias historicamente consolidadas, estilos populistas podem representar riscos às instituições, exacerbando as polarizações hoje presentes em praticamente todos os países. 

Ao levarmos em consideração a falta de maturidade da sociedade brasileira no período da Constituinte e, obviamente, as grandes mudanças ocorridas no mundo, não vejo razão para que não tenhamos a coragem de propor uma nova Constituinte que trate exclusivamente do pacto federativo, associado aos instrumentos de financiamento das atividades designadas aos entes federativos. Além das questões cruciais da representação política e do sistema eleitoral, associados à organização dos partidos políticos e, eventualmente, a possibilidade de candidaturas avulsas.

Para tanto, impõe-se um engajamento das nossas lideranças políticas, da sociedade civil e do próprio STF na elaboração de uma emenda convocatória desta eventual Constituinte, traçando seus limites de atuação e excluindo, com isso, a possibilidade de retrocesso no que tange às cláusulas pétreas. 

Assim, poderemos atenuar riscos de tentações autoritárias, cada vez mais presentes no cenário eleitoral brasileiro, e, simultaneamente, garantir aos futuros governantes a possibilidade de criar condições de enfrentamento à severíssima crise pela qual passamos. 

Por fim, vale advertir que esta proposta só adquire sentido se formos capazes de desenhar, de modo democrático, o processo dessa nova Constituinte, ao trazer para a discussão todas as principais forças e tendências políticas. E lembrar que o próximo dirigente máximo do país, seja quem for, terá como mote principal assegurar o bem-estar, em sentido amplo, dos brasileiros de hoje e das futuras gerações. 


Fabio Feldmann foi deputado constituinte e relator-adjunto da revisão constitucional de 1993.

Ana Elisa Egreja é artista plástica.

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