É válido revisar Constituição, mas momento exige extrema cautela, diz autor

Oscar Vilhena afirma que Carta é resiliente, mas é preciso esforço para preservar suas virtudes

Ilustração Ana Elisa Egreja

Oscar Vilhena Vieira

[RESUMO]  Ao defender a validade de propostas para a revisão da Constituição de 1988, autor recomenda cautela para que sejam preservadas as virtudes da Carta, em especial num momento de hostilidade mútua.

 

Ao completar 30 anos, ao invés de ter uma grande comemoração, a Constituição foi colocada no paredão. Ao menos pelo general candidato a vice, que promete um novo texto elaborado longe do clamor das ruas. Mesmo os candidatos do campo democrático não têm poupado o Pacto de 1988, prometendo profundas reformas.

A Constituição de fato tem problemas, que precisam e podem ser corrigidos, mas também tem virtudes que devem ser preservadas. O risco, num momento de grande polarização e hostilidade recíproca como o que vivemos, é jogar fora o bebê com a água do banho.

braço ergue a constituição
Ilustração - Ana Elisa Egreja

A Constituição é uma norma superior que aspira habilitar a competição política, regular o exercício e a alternância no poder, assim como assegurar o Estado de Direito e os princípios básicos de justiça que regulam as relações entre as pessoas e entre estas e o Estado. Sua principal função é contribuir para que a sociedade seja capaz de coordenar democraticamente seus conflitos

Nossa Constituição resultou do mais amplo e democrático pacto firmado entre os múltiplos atores políticos, institucionais, classes sociais e setores da sociedade, ao longo de nossa história. A reconstitucionalização brasileira não decorreu de um processo de ruptura com o antigo regime; mas foi parte essencial do processo de transição a que deu forma jurídica. 

Participaram do momento constituinte tanto as diversas forças democratizantes como aquelas que apoiaram e se beneficiaram do regime autoritário. Isso explica a sua natureza compromissária. 

Sua elaboração deu-se num contexto de forte desconfiança, fragmentação política e ausência de uma visão hegemônica sobre o país. Esse ambiente explica a estratégia dominante entre os diversos atores de buscar maximizar seus interesses, prerrogativas e aspirações, entrincheirando-os no corpo constitucional.

O resultado dessa estratégia foi a adoção de uma Constituição ampla, detalhista, ambiciosa e, em muitos aspectos, contraditória. Daí a ideia de um compromisso maximizador.

De um lado surgiu uma Constituição com ímpeto transformador, composta por uma generosa carta de direitos, que reagiu tanto ao passado imediato do autoritarismo como a um legado mais profundo de desigualdade, pobreza e subdesenvolvimento. 

A desconfiança no legislador, assim como no Executivo, levou a inserção de um amplo rol de políticas públicas no texto da Constituição, com o objetivo de ampliar o acesso à educação, saúde e assistência social, além de assegurar atenção especial a grupos vulneráveis.

De outro lado, o constituinte inseriu no texto uma série de cláusulas regressivas, baseadas em nossa forte cultura corporativista e patrimonialista, voltadas a concentrar renda e poder, por intermédio da inserção de uma série de privilégios, interesses de estamentos burocráticos e de setores econômicos.

Em termos políticos, a estratégia foi a dispersão do poder. Além de um complexo regime federativo, o constituinte adotou um modelo presidencialista que depende, para funcionar, de uma larga, custosa e eventualmente heterogênea coalizão parlamentar. A adoção do voto proporcional, com lista aberta, em amplos distritos eleitorais, levou a uma natural hiperfragmentação partidária, ampliação dos custos eleitorais, além de uma crescente heterogeneidade na formação das coalizões governamentais.

A desconfiança dos constituintes em relação à democracia que estavam criando levou a que os políticos, paradoxalmente, transferissem enormes poderes, além de autonomia financeira e administrativa, às instâncias de controle e aplicação da lei, especialmente o Ministério Público e o Supremo Tribunal Federal.

Esse compromisso maximizador funcionou como uma espécie de “seguro” no decorrer do processo de transição e consolidação da democracia, possibilitando que as diversas classes sociais, correntes políticas e ideológicas e grupos de interesse se dispusessem a coordenar os seus conflitos por intermédio das regras estabelecidas pela Constituição. Como todos ganharam algo com a Constituição, criou-se um forte incentivo para que não abandonassem o barco. 

Há uma longa tradição de crítica a Constituições extensas, detalhistas e ambiciosas, como a brasileira. O pensamento constitucional convencional considera como medida ideal as constituições liberais, em especial a concisa Constituição norte-americana de 1787. 

O ceticismo em relação às constituições detalhistas e dirigentes advém de múltiplos planos, partindo da hipótese central de que existiria uma correlação causal entre conteúdo minimalista do texto e sua efetividade, aplicabilidade e longevidade. 

A Constituição de 1988 foi, desde sua adoção, criticada com base num triplo diagnóstico negativo. 
Em primeiro lugar, considerou-se que sua ambição normativa levaria a uma enorme frustração social, na medida em que o Estado não seria capaz de cumprir com as promessas constitucionais (crítica da ineficácia material). Os juristas alertavam para as diversas imperfeições e contradições normativas, que levaria a constantes crises e conflitos interpretativos. 

Apontavam também que sua incompletude demandaria uma constante atuação do legislador. Em face do baixo grau de confiança no Parlamento, isso certamente contribuiria para que a Constituição se tornasse inoperável (crítica da confusão normativa). 

Por fim, apontava-se que a amplitude temática e o detalhamento tornariam a Constituição rapidamente obsoleta, o que levaria ao seu falecimento precoce (crítica do engessamento).

A Constituição de 1988 de fato enfrentou e ainda enfrenta problemas de ineficácia material, de conflitos interpretativos e mesmo de excesso de reformas, como prognosticavam seus críticos. Contra todos os vaticínios, no entanto, a Constituição sobreviveu, a democracia se estabilizou e os seus ambiciosos objetivos foram sendo paulatina e incrementalmente implementados.

A universalização dos direitos à saúde e à educação, assegurada pelos artigos 196 e 205 da Constituição, com financiamento assegurado por vinculação de receitas, permitiu que esses direitos deixassem de ter uma natureza meramente retórica. 

A educação fundamental passou a incluir basicamente todas as crianças e houve uma drástica redução na mortalidade infantil e ampliação na expectativa de vida dos brasileiros. O sistema previdenciário foi ampliado para os trabalhadores rurais, antes excluídos desse benefício. Os programas de assistência social e a ampliação do salário mínimo também contribuíram para tirar milhões de famílias da miséria. 

No campo da modernização das relações sociais, ambientais e do reconhecimento de grupos mais vulneráveis, também vivemos uma revolução silenciosa, que não deve ser negligenciada. Amplos programas de ação afirmativa, demarcação de terras indígenas, politicas antidiscriminação racial e de gênero são alguns exemplos de transformação colocados em marcha a partir da Constituição. 

O prognóstico de que a Constituição teria vida curta também não se realizou. Para surpresa de muitos, o documento se demonstrou bastante resiliente. 

Tomando livremente emprestado um conceito da física, resiliência é a propriedade que possuem alguns materiais de acumular energia, quando exigidos ou submetidos a estresse, sem que ocorra ruptura ou modificação permanente da sua natureza. Perduram no tempo, retornando ao ponto de equilíbrio. 
Não são rígidos no sentido da intolerância a certas pressões. Tampouco são flexíveis no sentido de modificarem radicalmente sua natureza quando pressionadas. “Acomodam” estímulos e pressões, adaptam-se, se perder sua função e identidade.

Nestas três décadas a Constituição foi reformada 105 vezes, o que aponta, por um lado, para certa “instabilidade normativa”, como sustenta meu colega Antônio Maués. Por outro, no entanto, demonstra uma enorme capacidade de adaptação. 

Cumpre destacar que a grande maioria dessas reformas não atingiu o cerne da Constituição. O sistema político e a carta de direitos encontram-se basicamente preservados. 

A grande maioria das mudanças ocorridas nestes últimos 30 anos dirigiu-se a alteração da ordem econômica, a correção de políticas públicas, a alterações nos regimes jurídicos do funcionalismo e da Previdência estabelecidos pela Constituição.

Não se deve minimizar o impacto de algumas dessas reformas. A emenda número 6, de 1995, por exemplo, deu início a uma profunda alteração do sistema econômico nacional-desenvolvimentista, originalmente desenhado pelo constituinte, abrindo espaço para uma maior liberalização da economia, privatizações e integração ao mercado internacional. 

Diversos elementos contribuíram para a resiliência da Constituição. O primeiro deles certamente foi o engenhoso sistema de reforma, que estabeleceu um duplo patamar de rigidez para alteração de dispositivos da Constituição de 1988. 

A regra geral para a reforma da Constituição foi flexibilizada. Basta que 60% de deputados e senadores estejam dispostos a alterar a Constituição, para que esta possa ser modificada. Assim, coalizões políticas minimamente estáveis e homogêneas não tiveram maiores dificuldades para alterar dispositivos constitucionais. Durante o período FHC foram 35 emendas. No período Lula foram 28 emendas.

Essa maior flexibilidade encontrou limites, no entanto, num robusto conjunto de cláusulas pétreas, estabelecidas pelo artigo 60, § 4º. De acordo com esse dispositivo, não podem ser objeto de deliberação as propostas de emenda “tendentes a abolir” a forma federativa, o voto (a democracia), a separação de Poderes e os diretos e as garantias individuais. Dessa forma, o bloco que estrutura nossa democracia constitucional encontra-se num patamar superior de proteção. 

Não seria incorreto afirmar que temos um núcleo constitucional super-rígido, circundado por dispositivos constitucionais mais flexíveis. A facilidade em reformar esses dispositivos mais flexíveis, assegurando a preservação dos princípios basilares da democracia constitucional, permitiu uma intensa atualização, sem que sua identidade fosse alterada. Daí o texto constitucional ter se mostrado resiliente até esse momento.
A amplitude temática e o tão criticado detalhamento também não se demonstraram um empecilho para que a Constituição se atualizasse. 

Como destacam Elkins, Ginsburg e Melton, em “The Endurance of National Constitutions” (a resistência das constituições nacionais), de 2009, é muito mais fácil para atores políticos chegarem a um consenso sobre a alteração de um dispositivo de uma constituição detalhista do que negociarem os grandes princípios de uma constituição concisa.

Sobre temas específicos, é possível estimar as consequências do que se pretende modificar. O mesmo não pode ser feito com relação à mudança de normas constitucionais mais amplas e abrangentes. 

Em face dessas características, a Constituição contribuiu para que os distintos segmentos do espectro político brasileiro se mantivessem leais ao processo democrático. 

placar constituinte
Ilustração - Ana Elisa Egreja

Num país com uma história constitucional tão acidentada, não é nada trivial que, por mais de duas décadas, todas as forças políticas relevantes tenham se disposto a participar do jogo político traçado pela Constituição, sem desafiá-la. 

Os protestos que tomaram as ruas das principais cidades brasileiras em junho de 2013 deram, no entanto, início a um perigoso processo de desestabilização do equilíbrio adquirido pelo sistema político do país a partir do pacto constitucional que selou nosso processo de transição, ainda que esse não tenha sido objetivo dos que foram às ruas. 

Ao contrário, as manifestações expressaram uma surpreendente disposição de muitos setores da sociedade, em especial dos mais jovens, de exigir o cumprimento das promessas feitas pela Constituição de 1988 nos campos dos direitos, da democracia e do Estado de Direito. 

O que se demandava era mais e melhor educação, saúde e transporte; um sistema político mais íntegro e representativo; e, por fim, exigia-se que a lei fosse aplicada a todos, sem distinção. Em resumo, o que se demandava era um aprofundamento de nosso ensaio constitucional, não seu abandono.

Os protestos, no entanto, expuseram diversas tensões que foram se aprofundando ao longo das décadas. 

A primeira delas, de natureza institucional, se refere ao um crescente atrito entre as elites políticas, organizadas em torno do presidencialismo de coalizão —degradado pela hiperfragmentação partidária e corrupção eleitoral— e o estamento jurídico, que foi se tornando cada vez mais autônomo de efetivo, especialmente a partir do julgamento do mensalão. Em alguma medida, ficou clara a dificuldade de se conciliar um Estado de Direito autônomo com um sistema político capturado pela corrupção.

A segunda tensão que aflorou a partir das revoltas de 2013 está associada as dificuldades cada vez maiores dos governos de arbitrar conflitos de natureza distributiva. 

Com o declínio da atividade econômica ficou mais difícil manter o precário equilíbrio entre gastos vinculados às políticas públicas e direitos sociais —que beneficiam os mais pobres— e as crescentes despesas decorrentes de privilégios, interesses setoriais e corporativos, especialmente na Previdência, assim como desonerações e perdões fiscais, que favorecem os mais ricos. A explosão do déficit público e a crise nos serviços básicos à população são a expressão do acirramento desse conflito distributivo.

Em 2014 tivemos uma polarizada e conflitiva eleição, marcada por uma conduta irresponsável do partido governista, que contribuiu para o agravamento da crise fiscal, com acentuado impacto sobre o emprego e as políticas sociais. 

A vitória de Dilma Rousseff foi contestada de maneira igualmente irresponsável por Aécio Neves, abrindo um perigoso precedente de descompromisso com o resultado do pleito eleitoral num sistema de competição política que já se tomava como estabilizado. Aécio acusou a chapa vitoriosa de uma série de abusos no processo eleitoral que, depois se soube, ele também havia cometido.

A partir de então, o embate político tornou-se mais duro e intolerante. A competição eleitoral foi se radicalizando. O padrão conciliador foi substituído por uma postura conflitiva. Também o direito e suas instituições passaram a colidir com a política numa frequência antes desconhecida, instaurando um cabo de guerra entre o estamento jurídico e as elites políticas. 

Prerrogativas institucionais e mandatos políticos passaram a ser utilizados de forma mais incisiva, ora com o objetivo de assegurar o Estado de Direito e a integridade do jogo democrático, ora apenas com a finalidade de debilitar adversários ou entrincheirar-se no poder, à margem de maiores considerações de interesse público.

Com a Operação Lava Jato, impulsionada pelos protestos, o país foi conhecendo um largo esquema de corrupção eleitoral envolvendo os principais partidos políticos que ocuparam o poder desde o processo de redemocratização. As ruas voltaram a ser ocupadas em 2015, mas ao público indignado com a corrupção adicionaram-se setores com uma agenda claramente não democrática. 

O contencioso impeachment de Dilma Rousseff; a ascensão de Michel Temer ao poder —a quem foi assegurada imunidade pela Câmara dos Depurados e pelo Tribunal Superior Eleitoral; a condenação de Lula, que levou o PT a desqualificar o sistema de Justiça; assim como a investigação, denúncia e condenação de outras figuras relevantes do sistema partidário geraram um perigoso desencantamento com a política, abrindo espaço para uma candidatura presidencial com um discurso abertamente refratário a princípios e valores democráticos expressos na Constituição, colocando em risco a própria democracia. 

Nesse contexto de forte acirramento dos conflitos políticos, institucionais e distributivos, inclusive com graves atos de violência política, que coincide com o trigésimo aniversário da Constituição, passamos a experimentar um forte mal-estar constitucional. 

Considerando a centralidade adquirida pela Constituição na vida política e econômica brasileira, a superação desse mal-estar exigirá, necessariamente, a correção de rumos e adoção de reformas, que demandarão um novo consenso político.

Não há dúvida de que necessitamos de um Estado mais eficiente e de um sistema político mais racional e menos vulnerável à corrupção, capaz de promover medidas que favoreçam o desenvolvimento sustentável da economia e, sobretudo, o aumento do bem-estar da população. O próprio colapso da segurança pública demandará reformas. 

Também é certo que, sem a remoção de diversos benefícios e privilégios de natureza patrimonialista e corporativista, incrustados nos sistemas tributário, previdenciário e de financiamento das atividades econômicas, os esforços de redução da desigualdade determinados pela Constituição serão neutralizados. O que está em jogo é quem irá perder.

Se há uma virtude intrínseca ao modelo constitucional adotado em 1988, é sua capacidade de adaptação, dentro das regras do jogo democrático. Com todas as suas idiossincrasias, o sistema político consensual montado na época da redemocratização do país foi capaz de promover uma constante repactuação das regras secundárias da Constituição, sem ameaçar a democracia. 

Essa virtude nada desprezível do modelo constitucional brasileiro tem especial valor em momentos de crise. Uma Constituição mais rígida já teria se rompido. Uma Constituição mais flexível teria sido desfigurada pelas maiorias de ocasião.

Exatamente por estarmos no centro da tempestade, a Constituição continua sendo o caminho mais seguro para resolvermos nossas diferenças, coordenarmos nossos conflitos e superarmos nossas dificuldades, mesmo os que derivem dos próprios dispositivos constitucionais. 

Como enfatiza Stephen Holmes, ao limitar certas condutas e proteger certos direitos, as constituições, paradoxalmente, contribuem para habilitar a democracia. 

Como não dispõem de um agente imparcial externo capaz de assegurar suas regras, as constituições dependem do compromisso dos diversos atores políticos e institucionais para sobreviver. Se é verdade que as constituições e seus guardiões jamais poderão substituir a política, também é fato que a condução da política à margem das regras e dos procedimentos constitucionais costumam degenerar em arbítrio e violência.


Oscar Vilhena Vieira, mestre em direito pela Universidade Columbia e doutor em ciência política pela USP, é diretor e professor da FGV Direito SP e colunista da Folha.

Ana Elisa Egreja é artista plástica.

Parte deste texto foi extraída do livro “A Batalha dos Poderes: Da Transição Democrática ao Mal-Estar Constitucional” (Companhia das Letras), no prelo.

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