De suas torres de marfim, comentaristas não entendem opção por Bolsonaro

A partir de memes do mundo do videogame, autor comenta postura repetitiva de intelectuais de esquerda

Cyd Losekann

[RESUMO] A partir de personagens dos jogos, autor comenta postura repetitiva de comentaristas que, de suas torres de marfim, falham em entender mecanismos que levam à opção por Jair Bolsonaro.

 

Aqueles que jogam videogame, sobretudo títulos de RPG, já estão acostumados com a figura do NPC. Os non-playable characters (personagens não jogáveis) são coadjuvantes que podem trazer informações importantes ao jogo, mas nada que influencie substancialmente a trama principal. Você pode conversar com eles quando bem entender, mas suas respostas serão sempre as mesmas, e seus movimentos serão igualmente limitados e repetitivos. 

No contexto político, os NPCs são figuras bem menos simpáticas que as do videogame —a comparação talvez seja até injusta, pois a interação com esses personagens no mundo da ficção ao menos costuma proporcionar diálogos divertidos. 

Nos EUA, os NPCs deram origem a um meme. Ele surgiu nos fóruns do 4chan e do Reddit, e o termo NPC passou a ser usado para designar os progressistas que repetem chavões saídos de uma variedade de fontes: de comentaristas políticos da CNN ou da revista New Yorker até séries da Netflix, que por algum motivo parecem feitas para se encaixar em discursos políticos pasteurizados, quando não para reproduzi-los.

desenho de pessoas cinzas
Meme sobre Non Playable Characters - Cyd Losekann

Não é de hoje que memes nascidos nesses fóruns e exportados para o Twitter despertam reações exageradas em seus alvos —típicas de quando a carapuça serve. O próprio boneco que viria a inspirar os NPCs, o Wojak, surgiu em 2016, ano de ouro dos memes políticos e, não por acaso, ano da eleição de Donald Trump. 

O ciclo desses memes é quase sempre o mesmo: nascem no 4chan ou Reddit, migram para o Twitter, viram polêmica, contas são banidas do Twitter, algumas pessoas se divertem, outras nem tanto, mas, a despeito do que dizem comentaristas, nada disso resulta em guerra civil ou danos psiquiátricos graves. 

Qualquer pessoa que estivesse disposta a analisar a política com algum distanciamento perceberia que Trump tinha boas chances de levar as eleições em 2016. 

Qualquer pessoa que não utilizasse referências saídas do universo de Harry Potter para fazer analogias com a realidade, por mais tentadora e conveniente que uma história envolvendo bruxos bons contra bruxos maus possa parecer, teria percebido que o candidato do Partido Republicano sempre esteve muito próximo de sair vencedor. Mesmo assim, Trump foi desdenhado por grande parte dos analistas políticos desde as eleições primárias do seu partido. Deu no que deu. 

Jair Bolsonaro tem percorrido uma aventura bastante semelhante à de Trump. Desta vez, porém, não há a desculpa da falta de precedentes para analisar o fenômeno. Mas os comentaristas, os opinadores que falam e escrevem do alto de torres de marfim, continuam a agir como se aquilo que ajudam a disseminar não tivesse consequências práticas sobre suas vidas e sobre sua credibilidade.

O dono da padaria que pensa que todo político é corrupto e o cobrador de ônibus, assaltado dia sim, dia não, que sai por aí repetindo que “bandido bom é bandido morto” não são NPCs. Sem dúvidas são pessoas com opiniões recorrentes, mas ser ou não um NPC não tem a ver com originalidade; não é uma simples questão de vaidade e sectarismo de nerds de internet —embora, é verdade, o meme dos NPCs tenha sido criação deles. 

Essas opiniões, de alguma forma, relacionam-se a um nível abrangente da realidade. Alguém que deseja a morte de assaltantes e assassinos certamente não teria coragem de fazer uma execução se recebesse carta branca para isso. Trata-se, antes, de um desejo de justiça, de saber que os criminosos cumprirão suas penas de maneira integral e, de preferência, sem indulto e sem regalias. 

O cidadão comum é cobrado diariamente pelo rendimento do seu trabalho. Não precisa ser um cidadão tão humilde: um investidor, por exemplo, pode sofrer consequências sérias por uma aposta infeliz. 

O NPC formador de opinião não faz mea culpa (expressão em moda), não revê suas opiniões erradas —muitas vezes faz questão de insistir no erro, apesar dos avisos vindos do mundo real— nem se esforça para demonstrar humildade.

Ao agir assim, o comentarista político tido como especializado faz nascerem vários novos NPCs, todos indistinguíveis em suas opiniões e nas palavras usadas ao expressá-las, em sua visão de mundo e no tipo de cultura que consomem —sejam eles artistas que emitem opiniões políticas, influencers com conta verificada ou “wanderlusters” do Instagram. 

Uma das primeiras reações da mídia progressista norte-americana ao meme dos NPCs veio com um artigo sobre a “desumanização” promovida por esse tipo de piada. A isso se seguiu a exclusão em massa, por parte da administração do Twitter, dos perfis que traziam o inexpressivo boneco cinzento como avatar, mais por pressão dos formadores de opinião do que por alguma ofensa justificável que o meme pudesse representar. 

Nada mais típico de um NPC do que acusar o golpe dessa maneira. Nada mais típico de um NPC do que acusar o adversário de coisas com significado vago e obscuro ou não aplicáveis ao contexto —como tem acontecido com “fascismo”, “nazismo” e “populismo”, por exemplo.

No Brasil, até agora, a reação aos memes “de direita”, dos apoiadores de Bolsonaro, não teve grande repercussão fora do ambiente das redes sociais. Mas os NPCs estão à solta por aqui também e acompanham as mesmas etapas percorridas na campanha americana, uma a uma, serem frustradas em nosso país. 

“Esse cara não vai longe”? Tivemos essa etapa. Devassa do passado do candidato para tentar constrangê-lo? Claro que tivemos, também sem êxito. Generalizações ofensivas, de “burros” a “nazistas”, contra os eleitores do adversário? Aconteceu, com o feitiço voltando-se contra o feiticeiro. Os grandes veículos de mídia e a imprensa partidária tentando derrubar o candidato a todo custo? Adivinhe: sim, também passamos e estamos passando por isso.

Os NPCs não são só insossos e ineficazes em sua oposição, o que não é de todo ruim; eles também ignoram completamente a realidade maior que existe além de seus “safe spaces”. Não consigo acreditar na ideia de uma manipulação unilateral, na imagem de um grande títere que controla uma massa de fantoches sem alma (exceto no caso de Fernando Haddad em relação a Lula). Essas pessoas se deixam manipular, pois até certo ponto é conveniente. 

A maioria só quer levar a vida sem envolvimento ativo com política, e ninguém pode condená-la por isso. No caminho, é normal que reproduzam algumas ideias falsas e até ingênuas, ainda que muitas dessas pessoas assumam um ar de superioridade moral e intelectual conferido pela segurança de não serem questionadas.

Com a mudança de cenário nesta eleição, seguem-se as reações esperadas de quem perde o seu chão —alguns perdem mais do que isso, num sentido menos metafórico.

Pedir conciliação e diálogo soa sensato, mas não diz muito. Não existe conversa sem demonstração de boa vontade. Pedir diálogo com alguém a quem se acusa de nazismo, sempre injustamente, é tão somente cinismo.

Quando se tem o domínio da narrativa, como dizem por aí, talvez isso passe despercebido, mas não mais. Não foi o “populismo” de direita, Steve Bannon ou o Pinky e o Cérebro que geraram um bando de revoltados da noite para o dia; essa é uma explicação simplista, preguiçosa, talvez até conspiracionista. 

Tampouco é culpa do WhatsApp, ainda que especulações vagas e infundadas possam ser usadas para tentar tirar a credibilidade dos indignados. Fetiches linguísticos e heroísmos baratos contra um nazifascismo quixotesco podem proporcionar prazer imediato, curtidas no Facebook e até certa sensação de pertencimento, mas não vão além disso —lembre-se de que agora falta chão. 

O próximo presidente sem dúvidas terá o desafio de reconstruir o piso desmoronado. Mas é necessário, também, ser mais do que um NPC. 

Não gosto de falar de política, não me agrada a politização total da vida instaurada pelo PT. Sob o nome de democracia, o partido criou um estado de coisas em que qualquer desvio do script resulta em convulsão social, convenientemente chamada de “clima de ódio”. 

Toda ameaça aos pontos fracos do PT é encarada como uma questão “acima de esquerda x direita” e resulta numa exortação em nome de valores pretensamente universais (dizer não ao Bolsonaro, por exemplo, virou uma questão das mulheres, dos gays, dos negros e, quando o argumento identitário mostrou-se insuficiente, da própria Humanidade, com “H” maiúsculo). 

Por ora, é importante querer algo diferente disso. Não se trata de ser “petista de sinal trocado” —esqueci de mencionar: NPCs têm o costume de se projetar nos outros—, de tomar para si um protagonismo até agora em posse dos comandados de Lula.

Envolve, isso sim, assumir o risco de errar, assim como a necessidade de reconhecer eventuais erros —mas envolve, sobretudo, ter coragem de ser parte da aventura principal. 


Cyd Losekann é historiador.

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