Onda antissistema que varreu o Congresso também se deve a novas regras

Alta taxa de renovação seria ainda maior se fundos fossem distribuídos de modo mais uniforme

Bruno Carazza

[RESUMO] Alta taxa de renovação do Congresso é mensagem da sociedade à classe política, mas poderia ter tido efeito maior com financiamento eleitoral mais equânime, defende especialista.

 

Um Congresso renovado e, de certa forma, mais representativo da sociedade brasileira e com menos vínculos com partidos tradicionais. O resultado das urnas é reflexo de uma reação do eleitorado à turbulência política dos últimos anos, mas também responde a mudanças recentes nas regras do jogo eleitoral. Entender o que aconteceu no último dia 7 é o primeiro passo para imaginarmos nossos próximos quatro anos.

Comparando a Câmara dos Deputados recém-eleita com aquela que foi escolhida em 2014, houve mudanças significativas na sua composição. O número de mulheres cresceu 50% (de 51 para 77). Há também mais deputados que se reconhecem negros, pardos, indígenas e amarelos (de 103 para 128 membros).

A nova Câmara é, ainda, um pouco mais jovem que aquela eleita em 2014 —a média de idade caiu de 50,9 para 49,4 anos. Salta aos olhos, porém, o fato de que o número de parlamentares com mais de 50 anos foi reduzido em quase a metade: de 180 para 96 eleitos. Sob esse ponto de vista, é inegável que a futura Câmara espelhe melhor a população.

A renovação recorde na Câmara (e no Senado) decorre de novas dinâmicas sociais que foram captadas de modo diverso pelos partidos. Dos 513 deputados eleitos, 70 nunca haviam disputado uma eleição (eram 56 em 2014). Desses novatos, 25 vieram do PSL de Bolsonaro, 7 do Novo e 5 do PRB. O sucesso desses partidos vem sendo atribuído a uma onda de direita (ou antipetista) que varre o Brasil. Faz sentido, mas a situação é mais complexa.

As maiores perdas foram justamente das siglas que dominaram a política brasileira desde a redemocratização. O MDB recebeu 55,4% menos votos do que em 2014 —imenso baque que também foi sentido por PSDB (queda de 44,5%) e PT (que sai das urnas 38% menor que há quatro anos).

Esses números indicam que, revoltado por tudo o que a Operação Lava Jato revelou (e ainda tem a revelar), o eleitor puniu os partidos que representavam o mecanismo. A onda é antissistema, portanto.

Mas a renovação do Congresso responde a outros fatores, de natureza institucional. Os dados do Tribunal Superior Eleitoral ainda estão sujeitos a revisão, mas existem indícios suficientes para acreditar que as minirreformas eleitorais de 2015 e de 2017 impactaram o resultado das urnas, para o bem e para o mal.

Em 2015 o STF (Supremo Tribunal Federal) alterou radicalmente a forma como a política é jogada no Brasil ao julgar inconstitucionais doações eleitorais de pessoas jurídicas. Em 2014 as contribuições empresarias representaram R$ 3,25 bilhões, dos R$ 5 bilhões recebidos por candidatos e partidos. Da noite para o dia, o STF tirou de circulação 75% do dinheiro oficial das campanhas.

A partir daí o sistema político movimentou-se para cobrir esse rombo. Diversas soluções foram aventadas, como a adoção de listas fechadas, a criação do distritão e até mesmo a “reconstitucionalização” das doações de empresas. 

Ao fim de muitas discussões, e premido pelo tempo (as mudanças precisavam ser aprovadas um ano antes das eleições), o Congresso aprovou um pacote com a possibilidade de pré-campanha nas redes sociais, o encurtamento do horário eleitoral para baratear a disputa e a criação de um fundo eleitoral de R$ 1,7 bilhão (mais R$ 800 milhões do fundo partidário) para financiar partidos e candidatos —mais tarde, o STF ainda determinou que ao menos 30% desses recursos deveriam ser utilizados em candidaturas femininas.

Para completar o quadro, o Congresso atendeu a reivindicações antigas de restabelecer a chamada cláusula de desempenho (exigência de percentual mínimo de votos para acesso a recursos públicos e direito ao horário eleitoral gratuito nos anos seguintes) e proibiu coligações nas eleições para vereador e deputados estadual e federal a partir de 2020.

Ao lado da crescente insatisfação com a classe política que aflorou na sociedade brasileira desde pelo menos as manifestações de junho de 2013, é preciso levar em consideração esse conjunto importante de mudanças para analisar a surpreendente renovação do Congresso em 2018.

Em primeiro lugar, a falta do dinheiro das empresas —de um lado, pela proibição das doações oficiais e, de outro, pela devassa sobre o caixa dois feito na Lava Jato— foi apenas parcialmente coberta pelos recursos públicos dos fundos partidário e eleitoral. Com menos recursos em caixa, os partidos tiveram de recorrer a candidatos que pudessem fazer campanhas mais baratas ou que pudessem bancá-las do próprio bolso.

Houve então uma corrida na direção a milionários interessados em participar da política (de 832 em 2014 para 1.041 neste ano, apenas na Câmara) e a candidatos com eleitorado cativo, como líderes religiosos (de 128 para 174) e ligados às Forças Armadas e às polícias (122 em 2014, 282 em 2018), assim como celebridades, apresentadores e radialistas. 

A estratégia surtiu efeito, e a nova Câmara terá 8 membros que usaram nomes religiosos na urna, 20 deputados vindos das forças policiais e 241 parlamentares com mais de R$ 1 milhão de patrimônio declarado (42 deles com mais de R$ 5 milhões).

Na tentativa de conseguir os votos necessários para sobreviver à cláusula de desempenho, partidos pequenos e médios trataram de lançar um número maior de candidatos a deputado federal. Na corrida para garantir ao menos 1,5% dos votos válidos para a Câmara, os partidos abriram suas portas para qualquer pessoa que quisesse se candidatar.

De acordo com os números do TSE, o total de candidatos a deputado federal elevou-se de 6.176 para 8.588 nos últimos quatro anos, sendo que mais de 40% da atual safra de candidatos nunca disputaram uma eleição na vida. Como vimos, muitos deles conseguiram se eleger, contribuindo para um Congresso com novos rostos e maior diversidade.

É bom lembrar, ainda, que o crescimento da presença feminina na Câmara (de menos de 10% para 15% dos membros) não pode ser dissociado da determinação do STF de obrigar os partidos a alocar 30% dos recursos em candidaturas desse gênero. É outro exemplo de como as regras do jogo influenciam no seu resultado —e, neste caso, o efeito sobre a renovação poderia ter sido muito maior.

Foi dito que o sucesso de Bolsonaro e seu minúsculo PSL seria uma forte evidência de que o dinheiro deixou de ser importante nas eleições, sobretudo se confrontado com o desempenho de Geraldo Alckmin e seu estoque de recursos e tempo de TV ou de Henrique Meirelles, que torrou R$ 45 milhões do próprio bolso.

É inegável que Bolsonaro soube como poucos aproveitar a pré-campanha nas redes sociais —enquanto PT e PSDB perdiam tempo com alianças para aumentar o tempo de TV, Bolsonaro se consolidava como o rei do WhatsApp. Mas não podemos esquecer que a mesma TV foi fundamental para garantir grande exposição ao capitão reformado ao longo de sua recuperação depois do lamentável atentado contra ele. 

Sem o dinheiro das empresas, a verdade é que o jogo ficou mais incerto. Tanto é que, em 2014, no ranking dos 100 candidatos a deputado federal que mais arrecadaram recursos, 90 deles conseguiram se eleger.

Neste ano, a taxa de sucesso foi bem menor: apenas 58 dos maiores arrecadadores conseguiu uma cadeira na Câmara. No entanto, os dados desagregados por partido e estado indicam que, em geral, os candidatos mais agraciados com recursos (do fundo eleitoral, próprio ou de terceiros) continuam tendo muito mais chances de ser eleitos.

Nesse sentido, a renovação do Congresso poderia ter sido muito maior se as regras de financiamento eleitoral fossem mais inclusivas. Como a legislação não estabelece nenhum critério específico para a distribuição dos recursos dos fundos, o que vimos nas eleições deste ano foi uma partilha díspar entre os correligionários de cada partido.

Como resultado, o grosso do dinheiro ficou na mão de políticos que buscavam a reeleição ou ligados a caciques regionais. Isso se refletiu inclusive na cota feminina: a maior parte dos 30% exigidos pela decisão do STF foi aplicada em esposas, filhas e netas de políticos tradicionais, como Danielle Cunha, Flávia Arruda, Marília Arraes e Elcione Barbalho —candidatas cujos sobrenomes dispensam apresentações.

Se houvesse critérios mais equânimes para a distribuição de recursos, normas para estimular a transparência e a democracia interna nos partidos, bem como limites baixos para o uso de recursos próprios e doações de pessoas físicas, certamente a renovação do Congresso teria sido mais alta.

O eleitor deu seu recado à classe política —mas regras de financiamento mais justas teriam tornado a limpeza maior.


Bruno Carazza, doutor em direito e mestre em economia, é autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: As Engrenagens do Sistema Político Brasileiro” (Companhia das Letras) e do blog “O E$pírito das Leis” na Folha.

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