De Fernanda Montenegro a Sonia Guajajara, 19 artistas e ativistas contam quarentenas

Brasileiros de diversas idades e regiões buscam na criação e no estudo maneiras de não sucumbir à pandemia

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[RESUMO] Em 19 breves relatos, brasileiros de diversas idades e regiões contam suas rotinas em tempos de confinamento. De Fernanda Montenegro à líder indígena Sonia Guajajara, passando por cineastas, escritores, músicos, fotógrafos, ativistas, educadores e médicos, todos buscam na criação e no estudo uma maneira de não sucumbir ao cenário desolador da pandemia.

O isolamento social imposto pela pandemia do coronavírus mudou a vida de bilhões de pessoas em todo o mundo. Embora não faltem motivos para desalento, há quem tenha encontrado na crise ânimo para se dedicar a novos e velhos projetos e retomar o estudo entre quatro paredes.

Ainda que o medo atrapalhe a concentração e também seja lícito não fazer nada, muitos cidadãos se sentem impelidos a dar rotina fértil ao confinamento.

Há bons e variados exemplos nos relatos a seguir. Na serra fluminense, Fernanda Montenegro reserva os dias para caminhadas e as noites para Machado de Assis. Em Porto Alegre, o escritor Luis Fernando Verissimo tenta, mais uma vez, organizar seus livros e discos, missão interrompida por alguns dias após um tombo em casa.

O compositor Jorge Mautner cria sem tréguas no Rio, assim como Capinan em Salvador. A atriz Helena Ignez pratica tai chi chuan em São Paulo, mesma cidade em que a ativista Preta Ferreira saiu de uma prisão domiciliar para entrar no confinamento decorrente da pandemia.

Em Brasília, o editor Charles Cosac trabalha sozinho em um museu. Por videoconferências, Sonia Guajajara tenta, de Imperatriz (MA), monitorar a evolução do vírus em aldeias indígenas.

O artista visual Jaider Esbell transformou seu ateliê em roça de milho em Boa Vista (RR), enquanto a cantora Angela Ro Ro tenta concluir, enfim, um livro em Saquarema (RJ).

Em conjunto, estes breves relatos sobre 19 brasileiros, famosos e anônimos, de variadas idades e regiões, compõem um mosaico das tentativas de viver e seguir em frente em meio ao turbilhão sanitário, econômico e político que castiga o país.

Fernanda Montenegro
Atriz, 90, Rio de Janeiro (RJ)

Na serra do Rio, Fernanda prefere os caminhos ensolarados. “Ando uma hora ao sol pela manhã e mais uma hora pela tarde. Ando mesmo. Passos largos, passos fortes para ganhar essa quarentena. No sol eu busco a força”, diz a atriz, que se isolou num sítio com a filha, Fernanda Torres. “Durante o dia ajudo a Nanda nos afazeres da casa. À noite, leio muito.”

Pelo celular com sinal precário, ela envia a lista de seus companheiros noturnos: “Epopeia de Gilgamesh”, de Sin-léqi-unnínni; “Ferreiros e Alquimistas”, de Mircea Eliade; “Dioníso a Céu Aberto”, de Marcel Detienne; a obra completa de Cecília Meireles; e “Contos Consagrados”, de Machado de Assis.


Julio Bressane
Cineasta, 74, Rio de Janeiro (RJ)

A sombra mefistofélica sobre uma cidade, no filme “Fausto” (1926), de F.W. Murnau, voltou à memória de Julio Bressane. “Ando muito assustado e muito acossado por esse pavor”, diz ele, referindo-se à “sombra que nos cobre”, como a peste, da política à pandemia.

Nos dias silenciosos do Leblon, o cineasta elabora as ideias de seu próximo filme, “O Leme do Destino”, no qual representará “os diversos desvios, os diversos deslizes nos caminhos do mundo a que o destino te leva”.

Antes de tudo, Bressane desenvolve a iconografia. “Vou trabalhando por pedaços, por fragmentos. Os fragmentos vão se juntando e se relacionando, transfigurados nesses pequenos detalhes. São os detalhes que acabam transtornando tudo.”

O livro "Profils Perdus de Stéphane Mallarmé" [Os Perfis Perdidos de Stéphane Mallarmé], de Jean-Claude Milner, é uma de suas leituras de confinado. O poeta francês Mallarmé, ao recorrer à ideia de uma greve, produz o efeito de aproximar do agora aquilo que está longínquo. “Uma greve que ao contrário das outras greves, em vez de ser uma interrupção do trabalho, para que haja alguma reivindicação, é a greve a que ele preconiza a si próprio. Uma greve onde o trabalho é ininterrupto.”

O poema “Bolsograma”, do concretista Augusto de Campos, crítico ao presidente Jair Bolsonaro, o emocionou no final de março. “Achei aquilo uma espécie de Mallarmé do século 21. Um apelo extraordinário de vida.”

Luis Fernando Verissimo
Escritor, 83, Porto Alegre (RS)

Viajantes frequentes, Lúcia e Luis Fernando Verissimo ancoraram por tempo indefinido em Porto Alegre. “Como eu normalmente trabalho em casa, minha rotina não mudou muito. A quarentena nos obrigou, isto sim, a sacrificar prazeres, como o cineminha e depois um restaurante, ou o de receber amigos em casa. Além do simples prazer de ir e vir sem o medo de estar respirando ar envenenado”, conta Verissimo.

“Temos um neto que mora longe, em São Paulo, mas a neta que mora perto é como se não morasse, pois só podemos vê-la à distância, e trocarmos abanos desconsolados. Nosso filho Pedro ficou conosco. Ele tinha uma vida social mais intensa do que a nossa e, portanto, precisou se adaptar às privações impostas mais do que nós, mas está sendo um bom companheiro no exílio.”

De seu lado, Lúcia assiste às lives de Mônica Salmaso e revê antigas aulas-espetáculo do escritor Ariano Suassuna. Pedro organiza o cardápio de filmes e séries televisivas a ser degustado, como a clássica comédia “Seinfeld”.

Além de escrever crônicas, Verissimo insiste numa velha missão: “Estou tentando organizar meus livros e meus discos, um projeto que, tenho certeza, continuará quando o corona for de novo apenas uma cerveja mexicana, e a pandemia apenas uma má memória”.

Poucos dias depois da entrevista, Verissimo levou um tombo em casa, o que o forçou a quebrar o isolamento. Com o rosto machucado, ficou cinco dias em observação num hospital. Por decreto de Lúcia, está proibido novo passeio hospitalar.


Sonia Guajajara
Líder indígena, 46, Imperatriz (MA)

Os planos de fazer colagens e vestidos não passaram do primeiro dia da quarentena. Em Imperatriz (MA), Sonia Guajajara guardou os metros de tecido e costurou videoconferências para monitorar a evolução da pandemia em aldeias indígenas.

“Essas reuniões de mobilização e de informativos ocupam todo o meu tempo”, diz Guajajara, candidata a vice-presidente na chapa encabeçada por Guilherme Boulos nas eleições de 2018. “A gente se adaptou muito bem nesse trabalho virtual. Estou ocupada 24 horas.”

Nos últimos quatro anos, a líder indígena não passou mais de quatro dias seguidos em casa. Confinada, agora viaja em bytes com o apoio dos três filhos. Em sua sala, numa tarde, dois computadores estiveram conectados a reuniões simultâneas da Mobilização Nacional Indígena e da Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

“Os filhos cobram demais para ver filmes. Dou um chameguinho e boto todo mundo para trabalhar”, diz. “Estou dentro de casa, até porque sou de um duplo grupo de risco: indígena e asmática. Meus filhos, que estudam fora, vieram. Minha mãe mora do lado. Não estou só”.

Ela sabe de cor as estatísticas do contágio do coronavírus entre povos indígenas de vários estados. “No Maranhão estava indo muito bem, com o povo assustado e se mantendo isolado nas aldeias. Até chegar o auxílio emergencial... Aí o povo começou a sair.” As ligações com o governo federal não se completam. “O Estado está totalmente omisso.”

Jéssica Senra
Artista visual, 24, Rio de Janeiro (RJ)

Em Santa Cruz, na zona oeste do Rio, Jéssica Senra recria a quarentena como uma imprevista performance de estudo e sobrevivência. “Moro onde se localiza grande parte da população mais pobre do Rio, parte da mão de obra que faz a cidade caminhar num sentido econômico”, diz.

“O fluxo de vida e trabalho prossegue para muita gente sem escolha de poder ou não parar nesta pandemia, incluindo minha mãe.”

Seus projetos de cinema e fotografia caíram sem deixar rastro do ano promissor. “Vi todos os meus trabalhos sendo cancelados ou adiados por tempo indeterminado e eu sem dinheiro.”

Nos momentos solitários, ela reconhece ganhos pessoais com o tempo largo em seu pequeno espaço. “A criação vem sendo constante. Minha vida se torna uma grande performance. Venho escrevendo muito, aprofundando diálogos ausentes para o meu presente, tentando criar uma interlocução para produções futuras e ‘curas’ para este presente.”


Jards Macalé
Compositor, 77, Itatiaia (RJ)

Um dia na vida confinada de Jards Macalé. De manhã, ele caminha numa estrada de terra batida de Penedo, em Itatiaia (RJ), e se envolve com os deveres do lar. “Sou um lava-loucista formidável. Sempre quis ser garçom. Resolvi preparar o café da manhã com o aparato de uma boa pousada.”

Mais tarde, ele vai ao computador e namora o violão. “A partir daí, boto o vídeo de João Gilberto e fico tocando com ele. Me passaram o show do Japão [João Gilberto – Live in Tokyo november 8 & 9, 2006 Tokyo International Forum Hall A]. A maioria das cenas é close na mão e no rosto. Peguei todas as harmonias. Antigamente João Gilberto me chamava para mostrar coisas. Agora que ele se foi, boto aqui e começo a tocar com ele.”

Na quarentena, ele já compôs três músicas e se tornou craque na limpeza de velhos LPs. “Estou lavando os meus vinis todinhos, que são em torno de 500, com o auxílio de minha mulher, Rejane Zilles.” Macalé entoa: “Lavar disco todo dia, que agonia”.

“Enfim, eu não faço porra nenhuma”, conclui o artista, que pode derivar, de súbito, para jogos de pingue-pongue, sem tirar o país da cabeça: “Se vacilar, vai ter guerra civil”. Macalé está entre os que desejam “botar esse cara pra fora, pro bem do Brasil”. E fundamenta: “Os bolsominions radicais são burros. Querem estragar o Brasil na porrada. Não pode.”


Helena Ignez
Atriz e cineasta, 80, São Paulo (SP) e Serrinha do Alambari (RJ)

Helena Ignez dança para si mesma em seu apartamento no centro de São Paulo. “Fico sozinha e gosto. Eu já disse que sou uma boa companhia. Fui descobrir isso depois da perda de Rogério [Sganzerla, com quem foi casada]”, afirma a atriz.

“Sou sempre experimental. Há 40 anos pratico o tai chi, essa filosofia corporal. Eu ouço blues e faço uma dança totalmente terapêutica, muito boa pro corpo, pra respiração.”

A convite do IMS (Instituto Moreira Salles), ela encenou a sua quarentena no curta “Fogo Baixo, Alto Astral”, sem escapar a indignadas batidas de panela na varanda.

Os livros do filósofo sul-coreano Byung-Chul Han são seus companheiros em São Paulo e numa comunidade ecológica da Serrinha do Alambari. “Leio em conta-gotas. Ele tem uma mente fresca, um sentido zen-budista, uma sabedoria estranha. Traz humor e alegria.”

A postura de Bolsonaro motiva a sua repulsa, mas ela evita o desespero. “Temos que lembrar muito de Oswald de Andrade: a alegria é a prova dos nove.”

Ian Viana
Poeta e sociólogo, 24, Brasília (DF)

Editor do jornal “Jararaca”, Ian Viana continua a aglutinar, virtualmente, artistas e escritores de Brasília. Seu humor oscila durante o confinamento bem-cevado de poesias de Oswald de Andrade e Roberto Piva.

“Criei uma disciplina alimentar e física para tentar combater o tédio e a tristeza. E ando me debruçando sobre a obra de Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino”, conta o brasiliense, autor do livro de poemas “Eu Era Aquela Cobra Coral no Quintal da Sua Infância” (Patuá).

As leituras ocupam as prolongadas horas de solidão. Vinculado à umbanda, o sociólogo vem estudando a epistemologia da macumba e os encantamentos da vida cotidiana.

“Sou provocado a escrever sobre a relação entre esse encantamento em risco e a obra de Pasolini, especialmente nos ‘Escritos Corsários’. Mas, toda vez que leio o italiano, uma angústia me acomete. Foi assim que cheguei ao cinema de Werner Herzog: é minha nova paixão.”

Zyun Masuda
Médico, 64, São Paulo (SP)

Longe do Hospital Sírio-Libanês, por integrar o grupo de risco da Covid-19, o médico clínico Zyun Masuda viu-se pela primeira vez socorrido pelos pacientes. “Todos eles, sem exceção, me proibiram de pisar no hospital. E o staff da enfermagem, da fisioterapia me proibiu também de pisar lá. Nunca me senti tão próximo na distância.”

Nas horas livres, Masuda voltou a ser um estudante de medicina, dedicando-se à bioquímica e à biologia molecular. “Daqui a pouco vamos comemorar o centenário da descoberta da insulina. Muita coisa se desvendou nessas últimas quatro décadas sobre os mecanismos de síntese e secreção.”

No meio de nossa conversa, ele telefona para o físico Luis Carlos de Menezes, 76, do Instituto de Estudos Avançados da USP, com o qual bebe e papeia pelo celular. “A pandemia mostra a interdependência entre ser humano e natureza. Somos biosfera. Se entendermos que é uma relação sensível, mudar com o ambiente vai ter outra dimensão”, diz Menezes, que acabou de entregar o livro “Educar para o Imponderável” à Ateliê Editorial.

“Tenho o grande alento de que vamos ter uma geração de médicos mais humanos e solidários. Eles estão arriscando as suas próprias vidas, as de suas famílias”, avalia Masuda. “Antes dessa pandemia eu tinha um certo receio da geração de novos médicos, com a procura de especialidades que lhes proporcionassem mais dinheiro e menos trabalho. Na pandemia, a essência humana da medicina brotou na alma dos profissionais de saúde que se encontram na linha de frente.”

Jorge Mautner
Escritor e compositor, 79, Rio de Janeiro (RJ)

As lições de Wong, seu mestre chinês de tai chi chuan no final dos anos 1950, são aplicadas por Jorge Mautner na quarentena. “Os movimentos são lentos, quanto mais lentos, melhor. A lentidão é essencial. As bases me dão muita saúde. Você vai pensando, pensando.”

Pensando, pensando, Mautner envia um novo poema a cada semana para João Paulo Reys, editor de sua série poética no Instagram.

“Somos todos condenados / a viver nesta dor do mundo / segundo a segundo / e por toda a eternidade / atormentados / e tudo isso é igual ao nada. // O poeta Hölderlin disse: / ‘somente aqui, / mergulhado na mais profunda tristeza, / é que eu consigo cantar a alegria’”, diz um dos poemas.

“Como sempre, estou escrevendo e compondo músicas, que é a maior distração. É uma vastidão. Eu fico tocando violino, vejo o noticiário. Tudo inspira”, garante o artista.

“Espero sempre que vá acontecer a mudança de tudo. Essa pandemia veio até para acelerar isso. Não tem outro jeito. Não há como atrasar.”

Maureen Bisilliat
Fotógrafa, 89, São Paulo (SP)

Uma pane elétrica atingiu a casa de Maureen Bisilliat em plena quarentena. Eficientes no socorro, os técnicos comoveram a fotógrafa pela finura do trabalho de estabilização da energia. “É importante rever e perceber as excelências que tem este país”, defende Bisilliat, que lançou o documentário “Equivalências: Aprender Vivendo” no início deste ano.

Com a luz firme, ela decidiu remexer um filme dos anos 1980. “Sabe que de repente fiquei encantada pela possibilidade desse ‘O Turista Aprendiz Revisitado’? Foi feito para uma sala especial da Bienal de São Paulo, em 1985. Tivemos a oportunidade de viajar por cinco semanas de Belém a Manaus, de Manaus a Porto Velho.”

O filme refez roteiros do modernista Mário de Andrade no Norte do Brasil. No novo processo de edição, Bisilliat envia por e-mail as sugestões de montagem.

“Finalizá-lo vai ser bom pro filme e pra mim, porque me dá uma continuidade neste momento em que estamos confinados. Você acorda e dorme com uma atividade. A continuidade é a base da sobrevivência. Se você não se atrelar a algo, pode ficar sem rumo.”


Jaider Esbell
Artista visual e educador, 41, Boa Vista (RR)

Uma roça de milho e macaxeira se esparramou no terreno do ateliê do artista visual Jaider Esbell, da etnia macuxi, em Boa Vista (RR). “Depois que o mundo mudou, estou fazendo uma roça no lugar em que ia construir uma vitrine pra galeria. Cultivo as roças como elementos artísticos, com essa possibilidade de faltar alimentos”, explica Esbell, convidado da 34ª Bienal de São Paulo.

Pinturas, esculturas e instalações convivem com as suas intervenções de educador e performer. Em abril, Esbell concluiu o curta “ContraPandemia”, no qual se equilibra no muro do ateliê e usa a vestimenta de palha da entidade Parixara, combinando flauta, maracá e amuleto de xamã.

Esbell revela familiaridade com o medo nascido da pandemia: “Enquanto indígena a gente já vem num processo histórico de fim de mundo. Viver o extremo das coisas já é parte da nossa própria dinâmica. Eu cresci vivendo violências e ameaças. Acredito que não tenha mudado. Talvez tenha mudado a forma de morrer”.

Tom Zé
Músico, 83, São Paulo (SP)

A quarentena de Tom Zé assumiu o portunhol selvagem como língua oficial. Reivindicada por um movimento literário da tríplice fronteira (Argentina, Brasil e Paraguai), sobretudo pelo poeta Douglas Diegues, a língua muy bonita envolve português, espanhol, guarani e, sem restrições, palavras de todos os idiomas do mundo. O tropicalista virou um hablante por razões profissionais.

“Estou trabalhando febrilmente com as músicas da peça ‘Língua Brasileira’, de Felipe Hirsch”, afirma Tom Zé, caçador de boas rimas em portunhol.

Hirsch se inspirou em sua canção “Língua Brasileira” e incorporou outras obras do artista baiano. As inéditas nascem aos poucos no confinamento. Nos primeiros dias, a concentração do músico abafou o noticiário. “Já estava numa quarentena sem saber. Sou uma criatura muito disciplinada, muito caseira. E eles todos se queixando que eu sou lento, mas não tem jeito. Toda a vida tem sido assim.”

“Não sou uma pessoa que tem facilidade pra fazer as coisas", completa. "Aquele cara que chega em casa três horas da tarde, toma um uísque e faz duas, três músicas… Nunca fiz isso na minha vida. Quer dizer, eu nem bebo, né? Bebia quando eu era criança. Trabalho muito com o erro. O erro é uma coisa importante em minhas músicas porque através do erro eu faço certas descobertas.”

Angela Ro Ro
Cantora e compositora, 70, Saquarema (RJ)

“Jardim grande, árvores, passarinhos e piscina velha, porém decente, que nem eu. Hoje está chovendo, mas quase sempre está com sol.” São notícias de Angela Ro Ro, confinada num sítio em Saquarema (RJ), pedaço de terra herdado de seus pais.

“Eu gosto de solidão, de ficar em casa. Já saí muito quando era nova. Fui muito arroz de festa. Continuo saindo, mas, com essa pandemia, não estou me sentindo perdida”, assegura a cantora. Ro Ro chegou ao sítio pouco antes do Carnaval, e desde então nenhuma angústia criou rugas: “Eu adoro viver. Viver é um hobby”.

No confinamento, ela procura cumprir antigas promessas. “Faz alguns anos que eu falo que vou fazer um livro, e a preguiça me toma. Mas tenho uma compilaçãozinha, uns rascunhos bem bagunçados no estilo Glauber Rocha, papeizinhos pela casa inteira. Estou com a pretensão de, até o verão que vem, lançar o livro.”

Nesses meses, a cantora retira de uma poupança magra o pagamento integral de três funcionários. Com shows suspensos, graceja: “Daqui a pouco eu vou pedir dinheiro emprestado a eles”.

Passada a temporada de sol e pandemia, ela espera uma chuva de convites, pois depende de dois espetáculos mensais para bancar as suas despesas. “Eu vivo o amanhã com o show que fiz ontem”, resume.

O destino político do país afeta o seu humor solar. “A gente não pode dizer que foi golpe ou ditadura, porque foi a opção das pessoas. Votaram numa pessoa inconsequente, psicótica, ignorante. A burrice anda ao lado da arrogância, você já reparou? As pessoas estão morrendo como mosca."

Preta Ferreira
Cantora e ativista, 36, São Paulo (SP)

O confinamento de Preta Ferreira começou em 24 de junho de 2019, dia em que foi presa junto com irmão, Sidney Ferreira, na sequência de uma denúncia do Ministério Público de São Paulo contra militantes por moradia.

Artistas e ativistas —entre outros, a americana Angela Davis— se manifestaram contra a prisão, por entendê-la como perseguição política ao Movimento Sem-Teto do Centro (MSTC). Depois de 108 dias, o Tribunal de Justiça determinou a soltura de Preta. Fim da primeira quarentena.

“Quando saí, fiquei em prisão domiciliar [outubro a dezembro de 2019]. Eu não podia sair de casa e me readaptei. Quando veio a liminar para poder sair, eu tive que ficar em casa, por causa da pandemia. Não entrei ainda em liberdade”, conta.

Durante a pandemia, foi suspensa a obrigação de ir todo mês ao fórum para assinar o que ela chama de “carta de alforria”, uma declaração de permanência em São Paulo.

Confinada, ela compõe músicas, tenta fazer exercícios (“pulo corda, pego os produtos de limpeza e faço de peso”) e se engaja em discussões sobre os absurdos do sistema carcerário, calejada pela experiência na penitenciária feminina de Santana. “O Judiciário ainda é um senhor feudal. As cadeias estão sendo construídas para pessoas negras.”


Charles Cosac
Editor e curador, 56, Brasília (DF)

Charles Cosac manipula pequenas fotografias do acervo do Museu Nacional da República e se surpreende com descobertas na reserva técnica, como a presença do mobiliário do ateliê brasiliense do pintor Rubem Valentim.

“Estou trabalhando sozinho no museu. Só tem o pessoal da segurança e da limpeza. Não tem perigo nenhum”, conta o diretor e curador da instituição.

“Se não fosse a pandemia, eu nunca teria tempo. Agora me sinto mais autorizado a falar sobre o acervo do museu. Quando acabar a catalogação, vou estar com ele todo na cabeça”, acredita o fundador da editora Cosac Naify, fechada em 2015. “Tenho trabalhado em dobro. O museu é rico por fora e pobre por dentro. Não tem recursos. O dia a dia consome muito, tanto que eu trabalho sábado para poder me organizar.”

Cosac diz ter assumido “a postura de funcionário público dedicado”. Chega às 9h30, depois almoça no Hotel Nacional, onde reside, e retorna outra vez para a jornada vespertina. Despede-se da tarefa de catalogador solitário nunca antes das 19h30.

Na TV do Hotel Nacional, evita notícias da pandemia. “Tudo o que eu passo a saber me deixa desgostoso. Claro que eu não pude escapar. Não dá para não saber. Ainda li num artigo que a Covid não pega em fumante. Eu fumo três maços de cigarro por dia”, respira, aliviado.

A OMS, no entanto, diz que não há dados científicos que confirmem que o consumo de cigarros previna a Covid-19 e alerta que fumantes podem ser mais vulneráveis ao coronavírus.


Joaquim Melo
Livreiro, 61, Manaus (AM)

O Teatro Amazonas foi o primeiro a fechar. Depois, as lojas e os bares. Em 20 de março, Manaus se recolhia na vizinhança da Banca do Largo, uma referência em literatura da Amazônia.

Enquanto observava o largo São Sebastião virar um deserto, Joaquim Melo atendia um biólogo alemão, seu último cliente, para quem vendeu R$ 1.000 em livros sobre árvores amazônicas.

Sem jornal ou televisão, Joaquim acompanha pela internet o colapso dos hospitais de Manaus, reconhecendo os nomes de amigos entre as vítimas. Seu trabalho foi transferido para o Facebook. Pela tarde, ele se tranca na velha banca de 30 m², a poucos metros de sua casa, para embalar encomendas como “Rebelião na Amazônia”, de Mark Harris, e “Sateré-Mawé – Os Filhos do Guaraná”, de Sônia da Silva Lorenz.

Na dieta de leitor confinado, Melo se enveredou por “A Queda do Céu”, de Davi Kopenawa e Bruce Albert, e “O Amanhã Não Está à Venda”, de Ailton Krenak. “Essa literatura indígena ganhou importância. O que está acontecendo com a Terra é um colapso de modos de usar abusivos.”

A obra do romancista Milton Hatoum, seu grande amigo, propicia o confronto entre a Manaus da infância e a cidade que agoniza nos leitos da Covid-19. “A literatura de Milton trabalha com uma cidade que existiu até o começo dos anos 70. Já foi desvirtuada faz tempo.”


José Carlos Capinan
Poeta e letrista, 79, Salvador (BA)

“Pensando em você / Doce delírio da quarentena / Navego um mar de ausências / Pedras e surpresas // Choro sem saber por quê / A correnteza do tempo / Outras canções eu esqueço / Sou obrigado a sonhar / Em arrancar sua blusa, rasgar um poema / Depois recordar inútil canção / Bruta delicadeza, ao forrar nossa cama / Sangrando luar foi-se a noite serena / Eu e você, amargo delírio da quarentena.”

No bairo do Rio Vermelho, em Salvador, o poeta José Carlos Capinan escreve embalado pela rede, de onde envia novas letras a seus parceiros musicais. Capinan é reconhecido pelas letras de canções clássicas como “Soy Loco por ti, América” (com Gilberto Gil) e “Coração Imprudente” (com Paulinho da Viola).

Diabético, ele enfrentou duas internações recentes. Sob resguardo, passou a só receber visitas do filho, da ex-esposa e de uma cuidadora, para aplicação de insulina. “Não é desejável, mas o sofrimento é uma força que impulsiona a criação. E o isolamento pressiona favoravelmente no sentido de que é necessário criar para exorcizar, para profetizar coisas melhores.”


Lia de Itamaracá
Cantora e atriz, 76, Ilha de Itamaracá (PE)

“Eu fico cantando, cantando, pedindo pro vírus ir se embora”, avisa Lia de Itamaracá, sem vacilo na hora de listar as canções de suas preces: “Minha Ciranda Não é Minha Só”, “Preta Cirandeira” e “Moça Namoradeira”.

Livre de obrigações, a diva pernambucana, que atuou recentemente no filme “Bacurau”(2019), relê sem parar a biografia “Lia de Itamaracá”, de Marcelo Henrique Andrade. “Não é bom? Não é bom ver de novo o que eu já fiz?”


Cláudio Leal é jornalista e mestre em teoria e história do cinema pela USP.

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