Menino se divide entre tradições israelenses e palestinas no filme 'Abe'

Leia trecho do roteiro da produção de Fernando Grostein Andrade que estreia em festival dos EUA

Lameece Issaq e Jacob Kader

[SOBRE O TEXTO]  O texto é parte do roteiro de "Abe", filme de Fernando Grostein Andrade rodado nos EUA que estreia no Festival de Sundance em 26/1. O personagem-título (vivido por Noah Schnapp, de "Stranger Things") é um garoto de 12 anos, filho de mãe israelense e pai palestino, que se divide entre as duas identidades até conhecer um chef brasileiro (Seu Jorge).  

 

INT. SALA DE JANTAR DE AMIR E REBECCA

SALIM, 72, pai palestino de AMIR, senta-se à mesa com AIDA, 70, mãe dele; também na mesa estão BENJAMIN, 73, pai israelense de REBECCA, e ARI, 58, primo de EINAV, que fica no celular. ABRAHAM [Abe], REBECCA e AMIR estão terminando de colocar pratos na mesa. 

[...]

SALIM
Esperamos que as coisas estejam ficando mais fáceis.

BENJAMIN
É, bem devagar, mas... É a vida.

AIDA
Sim.

BENJAMIN
Obrigado. Obrigado pelos figos que você mandou.

SALIM
Por nada.

ARI
Você pode me passar o bacon?

BENJAMIN
Bacon?

SALIM
Bacon?

ABRAHAM
É... Para acompanhar as cascas de batata. Eu deixei de lado. Por causa do halal. E do kosher.

ARI
(Esticando a mão para apanhar o bacon) É. Adoro bacon. Em qualquer idioma.

BENJAMIN
Tecnicamente, nem poderia estar na mesa.

ABRAHAM
Oh.

AIDA
Tsc.

BENJAMIN
(Para Rebecca) Ou na casa. (Dando de ombros) Quero dizer, se você está falando sério sobre kosher.

ARI
Vocês querem que eu vá comer lá fora? Ninguém precisa ficar tenso por—

ABRAHAM
Poxa, desculpem. Tentei—

AMIR
Olha, vocês todos sabem que esta família não segue o halal ou o kosher. Portanto... (Rebecca e Amir trocam um olhar.)

AIDA
(Em árabe) Esta família não faz nada.

SALIM
Yallah, está tudo bem, Brahim. Você já é quase um homem. Tem direito às suas escolhas, não?

BENJAMIN
Se você fizer o bar mitzvah no ano que vem —será 100% homem.

REBECCA
Está certo, Abba—

BENJAMIN
(Recuando) Não quero interferir —mas está na hora.

AMIR
É. Melhor você não interferir, Ben.

BENJAMIN
(Para Rebecca) Sua mãe queria isso.

REBECCA
Abba. Não força.

ARI
Uou! Uou! Sacando as armas da culpa, Ben? As Uzis da culpa, isso sim.

BENJAMIN
(Com simplicidade) Não. Não estou usando a culpa. É só a verdade.

REBECCA
Meu Deus.

SALIM
O que uma mãe quer é importante.

AIDA
(Em árabe, para Amir) E quanto ao que a sua mãe quer? (De volta ao inglês) Eu adoraria levá-lo à mesquita.

BENJAMIN
(Para Abe) Tecnicamente, você é judeu. Pela origem materna.

AIDA
(Para Benjamin, com o máximo possível de polidez) Tecnicamente ele é muçulmano, por causa do pai.

AMIR
(Para Rebecca) O ateísmo é patrilinear ou matrilinear? Não lembro mais.

REBECCA
Só... Basta, vocês todos. Vamos deixar o assunto de lado, tá? Alguém me passa o frango, por favor.

Travessas de comida são passadas silenciosamente entre os convivas. Então:

ABRAHAM
Eu quero.

REBECCA
O quê?

ABRAHAM
Quero fazer o bar mitzvah.

AMIR
Abe, calma lá, não—

ABRAHAM
E também ir à mesquita, e tudo isso—

AMIR
Nem a pau.

REBECCA
Desde quando?

ABRAHAM
Não sei. É só que... Não sei nada —e o pessoal todo que conheço está fazendo bar mitzvah e coisas assim e, sei lá, o banimento dos muçulmanos—

REBECCA
OK, meu bem, só—

BENJAMIN
(Para Rebecca, em hebraico) Viu?

ARI
Você precisa de uma banda ao vivo no bar mitzvah.

ABRAHAM
Uma banda?

ARI
E, tipo, uma cascata de chocolate.

REBECCA
Ari. Quieto.

ARI
(Sussurrando para Abe) Não seja egoísta, mano.

ABRAHAM
Uh...

REBECCA
Ari. Cala a boca.

ABRAHAM
Eu posso fazer coisas muçulmanas e coisas judaicas ao mesmo tempo.

AIDA
Bem —você pode experimentar as duas coisas. Mas não pode ser as duas coisas, na verdade, habibi.

BENJAMIN
Você tem que escolher, motek.

ABRAHAM
Oh.

AMIR
Não, ele não precisa escolher. Porque nós escolhemos por ele. (Pausa) Escolhemos o nada.

REBECCA
Amir —fique calmo—

AMIR
Vocês são todos inacreditáveis. Por que jogar tudo isso nas costas dele? Ele ainda é uma criança!
 
ABRAHAM
Não sou criança, pai—

AMIR
É claro que é.
 
Abe parece se retrair.
 
REBECCA
Talvez seja hora do bolo.
 
INT. COZINHA - CONTÍNUO
Abe vai à cozinha. Olha para o balcão. O bolo que ele acabou de tirar do  forno está fumegando, mas parece estranho. Ele sabe que o maldito bicarbonato não funcionou. Rebecca entra correndo.
 
REBECCA
Abe, vamos lá, não enrola.

ABRAHAM
Não cresceu como devia. E ainda precisa esfriar. Não posso—
 
Rebecca apanha a tigela com a cobertura, no balcão.
 
REBECCA
Deixa que eu cubro.

ABRAHAM
Não, mãe.

REBECCA
Tudo bem, então coloque seu nome nele e VAMOS LÁ.

Rebecca sai. Close em Abe, que parece frustrado e estressado.
 
INT. SALA DE JANTAR DE AMIR E REBECCA - CONTÍNUO
Close no bolo de Abe. A cobertura está uma bagunça, com crostas de bolo misturadas. CLOSE nos três bolos, onde se lê “IBRAHIM”, “AVRAIM” e, no bolo de Abe, “ABRAHAM”.

Todo o mundo está quieto e zangado à mesa, enquanto as velas são acesas.
 
REBECCA
(Cantando) Parabééééns...—
 
AMIR
(Ajudando) A você. Nessa data querida—
 
Benjamin logo adere, em hebraico, e Salim e Aida, em árabe. Quando chegam à parte do “feliz aniversário, querido Abraham”, Benjamin diz “Avraim”, e Salim e Aida dizem “Ibrahim”. Todo o mundo para de cantar e fica em silêncio, encarando Abraham.

Rebecca suspira. Abe olha para os três bolos. CLOSE no bolo “ABRAHAM”, que começa a murchar, com o nome escorrendo por um dos lados e as velas pingando cera.

Ilustração de Fernanda Sevaroli para a Ilustrissima de 23.12
Ilustração - Fernanda Sevaroli

Lameece Issaq é roteirista de origem palestina católica; Jacob Kader é roteirista de ascendência muçulmana e mórmon.

Tradução de Paulo Migliacci.

Ilustração de Fernanda Sevaroli.

Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.