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Alfredo Manevy

Cinema brasileiro precisa de política industrial para decolar

Boas bilheterias neste início de ano deram alívio, mas desenvolvimento do setor demanda planejamento estratégico e econômico

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Alfredo Manevy

Foi secretário-executivo do Ministério da Cultura (2008-10, governo Lula) e presidente da Spcine (2014-16). É diretor do longa metragem "Lupicínio Rodrigues - Confissões de um Sofredor"

[RESUMO] Sucessos de bilheterias nacionais e retomada do cota de tela neste início de ano reanimaram o cinema brasileiro, após período de penúria com a pandemia, mas fortalecimento do setor audiovisual a longo prazo só será viável se a dimensão econômica da atividade for estimulada tanto quanto a artística. Brasil carece de uma ampla política industrial que contemple toda a cadeia, da produção à exibição

O começo deste ano foi significativo para o cinema brasileiro. A comédia "Minha Irmã e Eu" atingiu em 6 de fevereiro a marca de 2 milhões de espectadores em salas de exibição, melhor marca do país desde 2019. A biografia dos Mamonas Assassinas teve outro resultado satisfatório, com cerca de 850 mil espectadores. E "Nosso Lar 2", ecoando o sucesso do primeiro filme, já chegou a 1,4 milhão.

Minha Irmã e Eu
Cena do filme 'Minha Irmã e Eu', de Susana Garcia, que passou a marca de 2 milhões de espectadores em salas de cinema - Ellen Soares/Divulgação

Embora esses resultados tenham sido comemorados, o momento foi mais de alívio que de redenção. Até novembro de 2023, o cinema nacional ocupava apenas 2,4% das bilheterias domésticas, muito abaixo da média das últimas décadas (14%). Só não foi pior que 2021 (1,47%), quando muitas salas ainda estavam fechadas em decorrência da pandemia. Em anos excepcionais recentes, filmes brasileiros chegaram a representar cerca de 20% da bilheteria. Na França, em 2023, o cinema local cravou 39,8% do público pagante.

O sumiço brasileiro do market share tem relação com a política bolsonarista de terra arrasada, que deixou o mercado ao deus-dará e a Agência Nacional do Cinema (Ancine) à deriva, sem Ministério da Cultura e sem cota de tela pela primeira vez desde Getúlio Vargas. Mas há algo a mais: a carência de uma política audiovisual com viés industrial para o Brasil.

Se é um equívoco ignorar a primazia cultural e artística do audiovisual, erro parecido seria desconsiderar sua dimensão econômica. Os países com políticas bem-sucedidas souberam desenvolver a dimensão industrial sem menosprezar uma atividade movida a talentos e artistas. Não por acaso, Hollywood, vez ou outra, precisa negociar com a força dos roteiristas.

A retomada da cota de tela, sancionada pelo presidente Lula (PT) em janeiro, foi um passo importante, mas incapaz de alterar esse quadro.

O Brasil vem batendo recordes de produção. Devemos terminar o ano com mais de 300 longas-metragens produzidos com investimentos da Lei Paulo Gustavo e do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA). Para onde irá essa produção?

O investimento público em distribuição ainda é tímido, e muitas obras não chegarão ao circuito. Segundo a Ancine, recursos para divulgação recebem apenas 30% dos investimentos em produção, o que dificulta lançamentos competitivos.

Outra limitação é que apenas 470 dos 5.570 municípios brasileiros possuem cinema, uma das menores relações sala-habitante da América Latina. Boa parte da nossa juventude, sobretudo a periférica, jamais experimentou a imersão oferecida por uma sala de cinema. Circuitos públicos com o da Spcine, que atinge milhões de pessoas das classes D e E, são ainda raros.

Assim como o crítico literário Antonio Candido considerava um público leitor condição para existir um sistema literário brasileiro, é razoável afirmar que um sistema audiovisual pressupõe a formação de público.

Mesmo com a supremacia do streaming, a sala de cinema ainda tem um papel essencial a cumprir como opção cultural nas cidades. Filmes nacionais não apenas reocupam as salas vazias da pandemia, mas atraem um público socialmente mais amplo e diverso.

É preciso, portanto, fortalecer uma produção de alta qualidade, capaz de escalar e de competir com blockbusters hollywoodianos. Nossos sucessos neste início de ano foram financiados pelas linhas comercias da Ancine, mecanismos que precisam ganhar agilidade. Determinados gêneros, como infantojuvenil, biografias e comédias, já têm espaço, mas é possível incentivar outros. A animação certamente é um deles.

Não se trata de reduzir a avaliação do cinema nacional a uma métrica econômica. Produções com financiamento público precisam ser avaliadas e ir bem ao menos em um de dois quesitos, bilheteria e relevância artística (mensurada em festivais e debates críticos).

O Brasil tem obtido reconhecimento por filmes autorais-independentes (ficções e documentários), uma produção que se destaca pela relevância e porque põe o dedo nas feridas sociais e culturais do país. Assim como na França, é importante tratar esses filmes como um nicho de mercado.

Pela importância de garantir a circulação desses conteúdos, cabe perguntar neste momento em que o governo federal propõe uma nova política industrial: por que a ausência do audiovisual nesse plano?

Se a ideia é depender menos de commodities, não haveria melhor momento para o Brasil se posicionar como grande produtor e exportador de conteúdo. A economia da cultura é potente: vide a revolução paulistana do Carnaval de rua, ou mesmo momentos altos do próprio cinema e da televisão.

Nos anos 1970, muitas produções chegavam ao grande público. "Dona Flor e seus Dois Maridos" (1976) alcançou 10,7 milhões de espectadores. "A Dama do Lotação" (1978) teve 6,5 milhões. Nessa época, o Brasil tinha cerca de 93 milhões de habitantes, contra 203 milhões hoje.

Um exemplo bem-sucedido hoje é o da Coreia do Sul. Com ênfase na internacionalização, o país engaja os conglomerados de tecnologia na produção e distribuição do filme nacional, além de empresas de cimento e outros setores tradicionais da economia.

O Studio Cube, com seus 32 mil metros quadrados e tecnologia de ponta, utilizado para as gravações da série"Round 6", comprova os elevados investimentos feitos pelo Estado e orientados por uma consistente política industrial.

Uma política audiovisual industrial não sofrerá retaliações na OMC. No audiovisual, nenhuma nação relevante pratica liberalismo. Há décadas, os Estados Unidos despejam milhões em dinheiro público por um sistema federativo de incentivos fiscais. A Inglaterra regula cotas de conteúdo nacional e tem na BBC um forte instrumento de difusão global. Falamos aqui só de porta-vozes do livre mercado.

A política cinematográfica deve, portanto, ir além da produção, para suprir uma oferta de mão de obra criativa e executiva, em nível universitário e técnico. Deve fortalecer a preservação, talentos de roteiro e direção, finalizadores e todo o ecossistema.

É preciso apoiar os formatos de TV e garantir parte da propriedade intelectual aos brasileiros. Muitas produtoras independentes que fazem séries de sucesso para as plataformas de streaming cresceram no ecossistema de políticas públicas impulsionadas pelo FSA, no qual receitas retroalimentam investimentos.

Quando chegou ao Brasil, a Netflix encontrou talentos e uma rede de produtoras profissionalizadas. O apoio público dos anos 2000 induziu significativos investimentos privados e a consequente transferência de conhecimento das plataformas para as produtoras.

Nada mais justo, portanto, que as plataformas contribuam para manter o FSA e garantam espaço para os independentes. Um dos pilares de uma política industrial é justamente a regulação dos streamings, que está atrasada no Brasil.

Os dois projetos de lei de regulação que tramitam no Congresso Nacional são inconsistentes. O texto relatado pelo senador Eduardo Gomes (PL-TO) é um retrocesso que implode o conceito de produção independente e esvazia justamente o FSA. Já o projeto do deputado André Figueiredo (PDT-CE), embora insuficiente, está aberto ao diálogo com os agentes brasileiros.

Em suma, para manter e ampliar os ganhos de diversidade e inclusão que enriqueceram a paisagem audiovisual na última década, é necessária uma política industrial. Da distribuição à exibição, da mão de obra à infraestrutura.

Para se firmar como voz global no século 21, uma visão ampla e estratégica sobre o audiovisual é necessária ao Brasil, sobretudo por suas implicações na soberania e no desenvolvimento sociocultural do país.

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