Afonso Arinos protagonizou momentos de ruptura da política brasileira

Para Sérgio Abranches, livro de memórias políticas é necessário diante de elites deseducadas

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Sérgio Abranches

[RESUMO] Sociólogo explora a trajetória e as contradições de Afonso Arinos, expoente do pensamento liberal brasileiro do século 20 cujas memórias são agora lançadas em livro

 

“As datas da República se multiplicaram depois de 1930. Os números se sucedem, ora cômicos, ora sinistros, quase sempre decepcionantes, na nossa loteria política.” Logo no início das memórias de Afonso Arinos, lê-se essa apreciação que sobrevive aos tempos.

Arinos é um arguto observador e protagonista da cena brasileira. Foram muitos os momentos políticos que ele viveu. Adaptando uma noção do filósofo francês Jacques Rancière, considero momentos políticos aqueles de rupturas relevantes. 

Foram várias as rupturas políticas das quais Arinos participou. Político longevo, protagonizou períodos significativos, da ditadura Vargas à Constituinte da Terceira República. Teve papel de destaque na liderança da UDN nas crises da Segunda República e muita influência na fase inicial e mais criativa da Constituinte de 1988. Foi chanceler de Jânio Quadros, o breve.

Então senador, Afonso Arinos de Melo Franco discursa na convenção da UDN, em 1959. - Folhapress

Republicano, democrata, liberal, suas memórias estão agora reunidas em “A Alma do Tempo”, volume editado pela Topbooks. José Guilherme Merquior, outro autêntico liberal, escreveu que ele era, antes de tudo, um humanista na política. Homem de letras, Arinos dizia preferir ser escritor a político. Foi os dois, com maior peso para o político, embora tenha sido exímio ensaísta e memorialista.

A leitura da sua memorialística é valiosa não apenas como registro histórico da política brasileira —da ditadura Vargas ao regime militar—, mas como expressão do pensamento de um dos mais completos liberais brasileiros e de suas contradições. 

Estas últimas, muitas vezes ele mesmo identificava. “Daí a contradição permanente que os homens do meu tipo, que não admitem a existência sem direito e sem liberdade, experimentam... Vivemos (pelo menos é o que sinto comigo) em permanente contradição íntima: de um lado, a necessidade imperiosa de uma profunda transformação social; do outro, a dificuldade, para não dizer impossibilidade, de levá-la a termo com o resguardo de certos princípios sem os quais não nos é possível viver”.

Arinos foi um liberal todo o tempo, conservador a seu modo, aberto a mudanças, mas adepto das “fórmulas consagradas” e progressista em algumas circunstâncias cruciais. Revela, desde a juventude, adesão a um liberalismo com consciência social. É bom lembrar que, em 1951, Getúlio Vargas promulgou a Lei Afonso Arinos, de sua autoria, contra a discriminação racial. 

Em 1959, ao relembrar viagem a Paris ainda na infância, no início do século 20, observou que, naquele então, “a burguesia olhava com desconfiança os partidos socialistas, que começavam a exigir para os operários a proteção dispensada aos animais”. Foi, ainda segundo Merquior, “o líder ciceroniano da oposição udenista” ao varguismo e ao trabalhismo do PTB e de João Goulart.

Nem por isso deixava de fazer a crítica afiada, com uma certa maldade mineira, dos vícios da UDN, “um partido de indecisões unânimes”. Ele a via vitimada por uma “cristalização conservadora”, opondo-se até às reformas necessárias. Anotou com ênfase suas divergências com o PTB, “pela minha formação democrática e antiditatorial”, e com a UDN, “porque minhas naturais inclinações pela justiça e o progresso social”, expressos na política externa independente, “se chocavam com o seu irredutível reacionarismo”.

A formação democrática e antiditatorial não o impediu de se tornar um dos conspiradores civis do golpe de 1964. Sua memória, no calor dos fatos, mostra como as elites civil e militar contrárias ao governo de João Goulart tinham a percepção de que o presidente tramava uma revolução socialista, e o país rumava para a guerra civil. 

É mais ilustrativa do momento político de então, que seria irremediavelmente de ruptura, que sua narrativa posterior, mais elaborada, ambas contidas em “A Alma do Tempo”. “Eu seria nomeado secretário de Governo [do estado de Minas, cujo governador era Magalhães Pinto] com o fim especial de obter, no exterior, o reconhecimento do estado de beligerância, caso a revolução se transformasse em guerra civil demorada, como justificadamente receávamos.”

Apartou-se definitivamente do regime militar quando este impôs ao Congresso a Constituição de 1967. “Eu esperava qualquer coisa de mau no sentido político, isto é, algo de rigidamente autoritário e de hostil aos princípios tradicionais e insubstituíveis do sistema democrático.” 

 

Para Arinos, havia uma contradição insanável entre o “autoritarismo político” e o “liberalismo econômico” da Constituição que a marcava como reacionária. O “estatismo sufocava as liberdades políticas ao mesmo tempo que protegia a livre empresa econômica. Transferia-se a legislação para as mãos do Executivo”, “raptava-se ao povo o direito de escolher o presidente, mas não se intervinha no terreno social, nem no econômico. Era o procedimento reacionário típico”. 

Arinos fez da sua desavença com o regime militar, a partir dessa Constituição, que pretendia legalizá-lo e legitimá-lo, sua despedida do Senado. Só retornou ao Legislativo como constituinte, em cuja primeira fase teve papel relevante.

Não tinha medo de rever posições ou retificar conceitos. Foi o que fez, por exemplo, em relação a Vargas, contra quem liderou a campanha parlamentar que terminou tragicamente. “Getúlio, velho, desiludido, incapaz de sobreviver ao próprio fracasso, desertou da vida; Jânio, vibrátil, jovem, crente talvez, ainda, no futuro, desertou do poder. Hoje, vista à distância, a trajetória que leva de um drama ao outro se ilumina com a identificação das causas. Essas causas decorrem, sem dúvida, das resistências oferecidas pela força dos interesses à transformação nacional exigida pelas condições históricas.”

A resistência à mudança histórica persiste hoje, eu diria, a empatar a sincronia do país com a transição disruptiva do século 21 em curso acelerado. Para Arinos, a diferença entre o conservadorismo e o tradicionalismo estava na capacidade de adaptar-se à mudança, de uns, e na adesão intransigente ao passado, de outros. “Os bons conservadores são aqueles que cedem às necessidades do progresso.”

Ele explica que “a marcha da história é inexorável” e “manter a identidade política não é conservar-se alguém imobilizado em posições que correspondiam a um tempo passado, mas, ao contrário, ser este alguém capaz de aplicar os mesmos princípios doutrinários à nova realidade”. 

Faz a síntese de seu pensamento: “Relatividade das doutrinas, aceitação do progresso social, crença nos valores permanentes e imprescritíveis do ser humano”. Essa visão muito pessoal o fazia estranhar a posição de seu pai e de companheiros que estimava, como Raul Fernandes, João Neves da Fontoura, Pedro Aleixo e Prado Kelly, “espíritos liberais, mas cujo liberalismo político se tinge, no tocante aos problemas sociais, de bacharelismo conservador”.

Ler ou, no meu caso, reler essas memórias de Afonso Arinos é como fazer muitas viagens. Uma longa jornada pela história, que vai da Revolução de 1930 (“algo imposto pela força e pela força mantido, durante oito anos, até que por ela mesma fosse derrubada”) à imposição da Constituição autoritária de 1967. Outra, por personagens e ideias, marcando sua permanente separação entre liberais, conservadores e reacionários.

Afonso Arinos de Melo Franco durante entrevista em outubro de 1986. - Paulo Whitaker/Folhapress

Arinos cria uma tipologia própria das posições políticas, culta, mas nem por isso menos pessoal. Talvez por ver nos partidos legendas vazias de conteúdo doutrinário, “grandes bandeiras de lutas pequenas”. Faz-se, também, uma volta ao mundo, com referências eruditas, históricas, políticas, artísticas e literárias.

É uma leitura agradável, mesmo tropeçando em divergências com seu pensamento. O livro é bem escrito, sincero na medida do possível, sempre inteligente —diria necessário, neste momento de liberais contra as liberdades e de elites políticas deseducadas. 

Afonso Arinos nasceu na alvorada do século 20 e morreu em 1990, antes do ciclo político-eleitoral que se encerrou em 2018. Ele tinha ideias mais atuais e maior capacidade de adaptar o liberal-conservadorismo ao progresso dos tempos do que aqueles hoje no poder. Se o lessem, aprenderiam a diferença que há entre um liberal-conservador e um reacionário.


Sérgio Abranches, sociólogo e cientista político, é autor de “Presidencialismo de Coalizão” (Companhia das Letras).

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