Em livro nigeriano, mulher limpa sangue após irmã cometer crime

'Minha Irmã, a Serial Killer', primeiro livro de Oyinkan Braithwaite, chega às livrarias neste mês

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Oyinkan Braithwaite

[SOBRE O TEXTO] O trecho nesta página faz parte do romance “Minha Irmã, a Serial Killer”, primeiro livro da autora nigeriana, que chega às livrarias neste mês pela Kapulana.

mulher limpa sangue em banheiro enquanto irmã observa
Ilustração - Cesar Habert Paciornik

Aposto que você não sabia que a água sanitária apenas esconde o cheiro de sangue. A maioria das pessoas usa água sanitária indiscriminadamente, presumindo que é um produto multiuso, nunca se preocupando em ler a lista de componentes na parte de trás da embalagem, nunca se preocupando em retornar à superfície recém-limpa para examinar mais de perto. A água sanitária desinfeta, mas não é muito eficiente na limpeza de resíduos; então, só a uso depois de ter esfregado o banheiro, eliminando qualquer traço de vida, e de morte.

É óbvio que o cômodo em que nos encontramos foi reformado recentemente. Tem aquela aparência de algo que nunca foi usado, especialmente agora que passei quase três horas limpando tudo. A parte mais difícil foi alcançar o sangue que havia escorrido entre o box e a barreira de silicone impermeabilizante. É uma parte fácil de esquecer. 

Não há nada em cima de nenhuma das superfícies; seu sabonete, escova e pasta de dentes estão todos guardados no armário sobre a pia. E há o tapete do chuveiro – um sorriso preto em um retângulo amarelo em um cômodo todo branco. 

Ayoola está empoleirada no vaso sanitário, os joelhos dobrados e os braços ao redor deles. O sangue no vestido dela secou e não há risco de pingar no chão branco e, agora, brilhoso. Seus dreadlocks estão amontoados no topo da cabeça, para não encostarem no chão. Ela fica me olhando com grandes olhos castanhos, com medo que eu esteja brava, que eu logo vá levantar das minhas mãos e joelhos para dar uma bronca nela. 

Não estou brava. Se estou qualquer coisa, é cansada. O suor da minha testa cai no chão e uso a esponja azul para secá-lo. 

Eu estava prestes a jantar quando ela me ligou. Tinha colocado tudo na bandeja – o garfo estava à esquerda do prato, a faca à direita. Dobrei um guardanapo como uma coroa e coloquei no centro do prato. O filme estava pausado nos créditos iniciais e o timer do forno tinha recém apitado, quando meu celular começou a vibrar violentamente sobre a mesa. 

Quando eu chegar em casa, a comida já estará fria. 

Levanto e lavo as luvas na pia, mas não as tiro das mãos. Ayoola está olhando para meu reflexo no espelho.

– Precisamos mover o corpo – digo. 

– Você está brava comigo? 

Talvez uma pessoa normal estivesse brava, mas o que sinto agora é uma necessidade urgente de sumir com o corpo. Quando cheguei lá, nós o carregamos até o porta-malas do carro, para que eu pudesse esfregar e enxugar sem ter que suportar seu olhar gelado. 

– Pegue sua bolsa – respondo. 

Voltamos ao carro e ele ainda está no porta-malas, nos esperando. 

A Terceira Ponte Continental quase não tem tráfego a essa hora da noite, e como não há postes de luz, o escuro é quase total; mas, se você olhar para além da ponte, consegue ver as luzes da cidade. Fomos até onde havíamos levado o último corpo – por cima da ponte e para dentro da água. Ao menos ele não estará sozinho. 

O sangue encharcou o forro do porta-malas. Ayoola se oferece para limpar, por se sentir culpada, mas arranco minha mistura caseira de uma colher de amônia para dois copos de água das mãos dela e derramo sobre a mancha. Não sei se eles têm a tecnologia para investigação completa de uma cena de crime em Lagos, mas Ayoola nunca limparia tão eficientemente quanto eu. 


Oyinkan Braithwaite é escritora e editora nigeriana.

Tradução de Carolina Kuhn Facchin, formada em letras, tradutora e assistente editorial.

Ilustração de Cesar Habert Paciornik, artista gráfico.

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