Diderot é antídoto contra o atual dogmatismo político, diz biógrafo

Livro de Andrew Curran tem como eixo dois pontos centrais do pensador iluminista: a liberdade de expressão e o ceticismo.

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Cada vez mais cultuado nos círculos acadêmicos e midiáticos dos Estados Unidos e da França, Andrew Curran, professor de humanidades no departamento de francês da Universidade Wesleyan (EUA), fez, há cerca de seis anos, uma aposta duplamente arriscada. 

Especializado em estudos antropológicos e filosóficos do século 18, ele abandonou momentaneamente as aulas e a produção de artigos puramente acadêmicos para se aventurar no gênero biografia. Depois, aceitou retratar a vida de ninguém menos do que Denis Diderot (1713-1784), um dos pensadores mais biografados de todos os tempos. 

Tinha boas chances de fracassar, já que, como se pode imaginar, seria muito difícil rastrear fatos novos e relevantes ou até mesmo descobrir um ângulo novo para tornar atraente mais um livro sobre o chamado “pai da Encyclopédie”.

Curran, porém, não poderia ter se saído melhor e acabou entregando a seus editores uma biografia exemplar, cujo título dificilmente poderia ser mais exato: “Diderot and The Art of Thinking Freely” (Diderot e a Arte de Pensar Livremente). O livro deve ser lançado no Brasil, pela editora Todavia, no primeiro semestre do ano que vem.

Retrato de Denis Diderot (1713-1784), filósofo, escritor francês e organizador da primeira Enciclopédia
Retrato de Denis Diderot (1713-1784), filósofo, escritor francês e organizador da primeira Enciclopédia - Reprodução

O título da obra é exato porque revela, logo de cara, aquele que talvez seja o maior atributo de seu biografado: a capacidade de navegar por todas as disciplinas —da política à sexologia, passando pela biologia— pensando cada uma delas por meio de uma apropriação muito particular e eficiente do método cético, com a coragem de examinar toda e qualquer ideia, inclusive as suas próprias, sem se deixar afetar por dogmas e certezas das autoridades da sua e de outras épocas. 

Um Diderot atual e inspirador emerge do livro de Curran. O pensador iluminista impressiona o leitor sobretudo pela descomunal capacidade de trabalho e realização —chegou a escrever 7.000 artigos de próprio punho para a Encyclopédie. 

Embora a biografia seja destinada ao leitor comum, poderá ser atraente e sugestiva também para o leitor especializado. “Como Montaigne ou Benjamin Franklin, Diderot é o tipo de autor que podemos transformar em nosso amigo. No caso, um providencial amigo cético, perfeito para enfrentar o dogmatismo e a brutalidade política e religiosa dos dias atuais”, diz Curran. 

Em vez de correr atrás de novidades e extravagâncias da vida sexual ou familiar do pensador francês (mas sem, no entanto, deixar isso de fora), Curran resolveu, acertadamente, privilegiar as tensões e as contradições do projeto iluminista, do qual Diderot foi uma liderança inconteste e decisiva. “Tome, por exemplo, a tensão entre ciência e escravidão”, diz o biógrafo. “Muito mais do que dizer que a escravidão era algo ruim, Diderot procurou refutar metodicamente os estereótipos raciais que à época pretendiam justificar o comércio de escravos africanos”, explica.
 

Curran aproveitou sua incursão pela vida do autor dos contos filosóficos “Jacques, o Fatalista”, “O Sobrinho de Rameau” e “A Religiosa” para propor uma retomada das ideias e dos métodos da Iluminismo. A ênfase recaiu sobre dois eixos centrais do movimento do século 18 —a saber, a liberdade de expressão e o ceticismo.  

“Para Diderot, o ceticismo era tanto um método capaz de nortear o fazer científico quanto uma atitude capaz de nos guiar pela vida comum e, consequentemente, uma arma contra o dogmatismo dos políticos, que, diga-se, nunca foi tão acintoso como nos dias de hoje”, diz o biográfico, que virá ao Brasil em outubro deste ano, a convite do departamento de Filosofia da USP, para uma série de conferências. 

A seguir, trechos da entrevista que Andrew Curran concedeu à Folha, por skype e email.
 

Por que resolveu escrever uma biografia de um dos pensadores mais biografados de todos os tempos?
As origens do conflito entre religião e ciência sempre me interessaram. No final dos anos 1990, na pós-graduação, algumas leituras me levaram a uma das razões desse conflito, a saber, a noção de monstruosidade. No século 18, a anomalia humana (por exemplo, uma criança com duas cabeças) suscitava grandes debates entre providencialistas e “acidentalistas”, embora, já no século anterior, Francis Bacon houvesse dado enormes passos no sentido de enquadrar as anomalias humanas no âmbito da história natural. 
Bacon dizia que a monstruosidade era um ponto de referência por meio do qual os naturalistas poderiam identificar desvios na regularidade da vida natural. Na Academia Real de Ciência de Paris, debatia-se calorosamente a monstruosidade: sinal da ira de Deus ou puro acidente que vinha da natureza? 
Não eram poucos os que acreditavam na tese do acidente natural, mas o problema era assumir essa posição, pois fazê-lo significava afirmar que Deus não era responsável por certas coisas. Essa questão teve um grande efeito em homens como Diderot e D’Alembert, responsáveis por estabelecer, por meio de alguns verbetes da Enciclopédia, uma compreensão mais racional dessas anomalias, desmistificando-as e tirando-as do terreno da superstição.

Cena da peca "O Libertino", dirigida por Jô Soares, em que Cassio Scapin interpreta o filósofo  Diderot
Cena da peca "O Libertino", dirigida por Jô Soares, em que Cassio Scapin interpreta o filósofo Diderot - Leticia Moreira/ Folhapress

Colocando-as no âmbito restrito da ciência?
Sim. Diderot apropriou-se da visão baconiana e fez da monstruosidade um modelo para o estudo racional da ordem natural. No contexto da história das ideias e das ciências, ele tinha uma fascinação especial pelas anomalias humanas. Essa fascinação aparece fortemente na “Carta aos Cegos” e em “O Sobrinho de Rameau” ou mesmo em O “Sonho de D’Alembert”. Neste último, ele sugere que as categorias dos gêneros talvez tenham emergido de um passado fluido onde “o homem era apenas uma forma excêntrica de mulher, e a mulher uma forma excêntrica do homem”. 

Uma concepção extravagante.
Sim. Em 1997, publiquei o artigo “The Faces of Eighteenth-Century Monstrosity” (as facetas da monstruosidade no século 18), e no começo dos anos 2000, publiquei o livro “Sublime Disorder, Physical Monstrosity in Diderot’s Universe” (desordem sublime, a monstruosidade física no universo de diderot), ambos resultantes das minhas pesquisas na pós-graduação. 
Já em 2013, publiquei um outro trabalho, o livro “The Anatomy of Blackness: Science and Slavery in an Age of Enlightenment” (a anatomia da negritude: ciência e escravidão na era do iluminismo), no qual trato da questão racial, outro tema importante em Diderot. Ele foi, entre os iluministas, uma das vozes mais fortes contra o comércio de escravos. 
Em 2013, como se sabe, comemorou-se o 300º aniversário de nascimento de Diderot. Por ele ser um personagem constante em meus trabalhos, acabei dando algumas entrevistas e escrevendo artigos dizendo essas coisas meio curiosas sobre ele, ora acerca da questão dos monstros, ora acerca da escravidão. Isso chamou a atenção de algumas editoras e uma delas me desafiou a escrever a biografia.

O que exatamente chamou a atenção dos editores?
Creio que o fato de eu colocar muita ênfase em dois dos mais relevantes aspectos da trajetória intelectual de Diderot: seu ceticismo e sua defesa intransigente da liberdade de pensamento. No primeiro caso, Diderot é uma expressão grandiosa dessa força contínua da história da civilização ocidental, o ceticismo: é fácil notar que as grandes transformações começam pela dúvida. 
Já no caso da liberdade de pensamento, Diderot não se preocupava apenas com a demolição da ideia de Deus, mas com o que colocar no lugar dela, isto é, qual a motivação para sermos moralmente corretos em um mundo sem Deus. É uma concepção de liberdade que, por exemplo, diferia muito daquela que estávamos construindo aqui nos Estados Unidos, onde até hoje não conseguimos superar o vínculo entre pensamento e autoridade. 
Considere que no Texas os livros didáticos ainda são orientados pelo criacionismo, ou seja, ainda não superamos o debate elementar do século 18.

Isso certamente surpreenderia Diderot, não? 
Muito, sem dúvida. Quando falamos sobre liberdade de expressão, o Iluminismo tornou-se uma vítima da sua própria “tolerância”. No século 18, homens como Voltaire e Diderot frequentemente advogaram pela tolerância religiosa, mas o que eles estavam de fato dizendo era que os seres humanos deveriam também ser livres da religião em suas vidas domésticas, se assim quisessem. 
Isso mudou. Tolerância, nos Estados Unidos, agora significa a liberdade de praticar uma determinada religião da forma mais ampla possível, sem que ela seja questionada. O paradoxo é que a perspectiva científica, empírica e cética do Iluminismo não tem mais “permissão” para se expressar inteiramente na esfera pública. 
É sem dúvida irônico que as crenças iluministas na tolerância não só permitiram que as religiões chegassem intactas ao século 21, mas que também sejam tratadas como “incontestáveis”. 
Por isso, eu digo que aprender a pensar livremente continua sendo o maior desafio dos homens. Em Diderot, certamente temos um bom guia para chegar lá.

A noção de pensamento livre é anterior ao Iluminismo. Por que ela ganha força na era das Luzes?
Claro, sempre houve pensadores livres, isto é, sempre houve aqueles que se desviaram da norma e que questionaram as autoridades. Os primeiros pensadores livres provavelmente foram aqueles homens pré-históricos que disseram que poderiam cultivar a terra, em vez de caçar animais para comer. 
Pensar livremente, tal como agora entendemos isso (e note que geralmente tomamos esse termo para indicar uma rejeição do dogma religioso), é algo que data da Renascença, quando Lucrécio e outros pensadores da antiguidade começaram a ser lidos. No século 17, pensar livremente estava associado a um gesto anticlerical.

Como foi possível para Diderot transformar-se num artista do pensamento livre depois de quase ter sido um padre? 
Estar imerso em um determinado mundo é um bom começo para se rebelar contra esse mundo com mais consistência. Diderot estava entre os religiosos mais educados; seu pai o queria clérigo. Havia feito progressos significativos no sentido de ser padre. Isso o ajudou a pensar a religião a partir de uma perspectiva mais profunda e intelectual, e não simplesmente a partir de um ponto de vista ateísta convencional.

Houve dois Diderot: o que escreveu para os seus contemporâneos (mais conciliador) e o que emerge de sua obra póstuma (mais radical)?
Diderot modulou o seu radicalismo como uma espécie de bomba-relógio pronta para explodir em nós. Claro que muito de seus textos publicados em vida já eram radicais, especialmente aqueles publicados antes de ele ser preso, em 1749. 
Os verbetes que ele escreveu para a Enciclopédia eram relativamente radicais, mas o real radicalismo da obra era cumulativo, o que significa dizer que só se absorve o método do livre pensar lendo-a inteira —e não seus verbetes individualmente. 
Não é um texto puramente anticlerical e antirreligioso. Nem poderia ser. Ao contrário de Rousseau e Voltaire, Diderot vivia em Paris e lá era preciso ser muito, muito cuidadoso. Mas os livros que optou por não publicar em vida, como os contos filosóficos “A Religiosa” e “Jacques, o Fatalista”, ou os textos de crítica de arte ou mesmo o tratado político que escreveu para Catarina, a Grande, tinham, como se diz hoje, um tom acima.

Em que sentido se pode dizer que Diderot antecipou Darwin e Freud?
Diderot intuiu ou compreendeu o fato de que a psicologia humana é um emaranhado que claramente está ligado aos impulsos sexuais. Em “O Sobrinho de Rameau”, outra obra radical que deixou para ser publicada postumamente, ele sugere que uma criança, se deixada a crescer sozinha, iria querer dormir com sua mãe e matar o seu pai. Como sabemos, Freud adorou isso. 
Em relação a Darwin, Diderot acreditava na profunda mutabilidade e dinamismo da natureza. Ele não previu a evolução, mas certamente deixou Deus de lado nas suas interpretações da natureza e seus textos sugerem que a ordem que se via no mundo era resultado de uma “triage” ou “seléction natural”. 

Tendemos a ver a Enciclopédia mais como uma conquista intelectual, mas ela é também uma grande conquista empresarial, como sugere Robert Darnton em seu “O Iluminismo como Negócio”. Diderot foi um bom empresário também?
Longe disso. Quem ficou mesmo com o dinheiro do empreendimento foram os editores (publishers). Nessa frente, ele era meio desligado. Desprezava acumuladores de dinheiro, embora fizesse parte de seus sonhos se libertar dos problemas financeiros, o que é diferente de sonhar em ganhar muito dinheiro. Mas é verdade que ele tinha um quê de bom gestor de pessoas e conflitos.

O filósofo e escritor Jean-Jacques Rousseau
O filósofo e escritor Jean-Jacques Rousseau - France Presse

A relação de Diderot com Catarina 2ª da Rússia foi marcada também por questões financeiras. Ela deu muito dinheiro para ele, não?
Ela comprou a biblioteca dele e pagou por pinturas que ele indicava, obras que aumentaram sua coleção particular e que redundaram na criação do Museu Hermitage. O fato relevante é que Catarina não ouviu Diderot, que deu todas as instruções para ela, por exemplo, melhorar a educação de seus súditos. 
Se ela tivesse levado a cabo as reformas que ele propôs, a Revolução Russa talvez jamais tivesse ocorrido. Diderot não foi totalmente honesto com ela, até que acabou se afastando de vez. É complicado ser totalmente franco com alguém que detinha tanto poder —um poder tão grande que nem o Putin pode imaginar.

Rousseau e Diderot foram amigos, mas como sempre acontecia com Rousseau, a amizade se rompeu. Qual o legado dessa amizade?
A amizade foi interessante, mas não há nenhum legado significativo. Rousseau acreditava que as coisas estavam piorando e que a civilização (o progresso) acabaria por nos arruinar. Diderot, por sua vez, acreditava que a educação e o progresso nos permitiria abandonar a superstição e o obscurantismo. Visões diferentes de um futuro que ainda está nas nossas mãos.

Uma das partes mais interessantes do livro é a sua descrição do Salão do Barão de D’Holbach. David Hume e Diderot chegaram a se cruzar por lá?
Sim, certamente, e tinham muito em comum, por exemplo a crença na experiência como única e verdadeira fonte do conhecimento possível, mas é difícil rastrear o quanto um conhecia o outro.

Em 1748, Hume escreveu, em uma polêmica nota de rodapé, que “tendia a suspeitar que os negros eram naturalmente inferiores aos brancos”. Qual era a posição de Diderot?
Na época em que Hume escreveu isso, Diderot provavelmente não teria se incomodado muito. A partir de 1776, já havia se tornado uma das vozes mais poderosas a refutar os estereótipos raciais que estavam por detrás ou que tentavam justificar o comércio de escravos.

Por que devemos ler Diderot hoje?
Diderot era um cético. Nos estimulava a questionar o dogmatismo. E hoje, o que justamente mais precisamos é de mais ceticismo, simplesmente porque o ceticismo é o primeiro passo rumo à verdade, tal como Diderot pregava. Os políticos são dogmáticos, o que é o oposto do ceticismo. Ou seja, Diderot é um antídoto contra o atual dogmatismo político. De resto, sua voz é sempre relevante para a defesa da ciência na esfera pública. 

Diderot era mais tolerante do que seus pares iluministas?
Com as pessoas, diretamente, Diderot era muito tolerante. Diferentemente de Voltaire e do Barão D´Holbach, por exemplo, ele mantinha amizades com um monte de padres.

Era um ateísta moderado.
Perto de Holbach, era, sim, muito moderado. Holbach ficou famoso por transformar a sua casa na rua Royale, em Paris, em um verdadeiro salão do “pensamento livre”, também conhecido como “hôtel des philosophes” ou ainda como “fábrica de ateísmo”. Frequentado por gente como David Hume, Adam Smith, Laurence Sterne, Madame d´Epinay e Benjamim Franklin, entre outros, o salão produziu várias obras com o objetivo de massacrar a igreja. 
Diderot sabiamente evitou deixar suas impressões nessa produção, mas deu contribuições marginais para algumas delas —por exemplo, influenciou a obra mais popular do ateísmo que é o livro “Sistema da Natureza ou das Leis do Mundo Físico”, assinado por Holbach. Diderot certamente não era muito feliz com a igreja, pensava que tinha um papel nocivo para as pessoas, contribuindo para a sua infelicidade. A questão para Diderot não era matar Deus, mas o que colocar em seu lugar.

Diderot também protagoniza o seu livro The Anatomy of Blackness? 
Não exatamente, embora o tema de que trata o livro passe diretamente pelos debates centrais nos quais ele estava envolvido. The Anatomy of Blackness é o livro mais político que fiz, embora não trate o tema da escravidão a partir de uma perspectiva moral. 
O período no qual o Iluminismo se desenvolve, ao contrário do que de imediato costumamos pensar, foi uma era de muitos contrastes: por um lado o progresso, a razão, a educação, os direitos humanos e a tolerância. Por outro, a crítica contundente da própria razão (Hume e Rousseau), a escravidão transatlântica, o racismo. 
Direita e esquerda, que de certa forma são frutos iluministas, hoje se dividem em relação aos legados do movimento. A esquerda sustenta que o Iluminismo, embora tenha feito coisas boas, conduziu-nos a uma insensibilidade devastadora, deixando, por exemplo, a escravidão desabrochar. 
A direita, por sua vez, também afirma um certo legado positivo de Voltaire, Montesquieu, Holbach e Hume, mas condena seus exageros em favor dos direitos humanos e contra a religião. Tentei ficar totalmente de fora dessa disputa. 
A tese fundamental deste meu livro, que tem Brasil e Portugal como grandes protagonistas, procura passar longe dos pontos de vista ideológico e moral. O que tento descrever neste trabalho é o modo pelo qual a revolução científica e a expansão colonial caminharam juntas e como essa confluência resultou no discurso racial moderno. 
Esse discurso, de um lado, surge por meio dos famosos diários de viagens dos naturalistas que tentavam mapear as etnografias do mundo. No entanto, enquanto esses naturalistas, esses cientistas estavam procurando entender as origens das diferenças humanas ao redor do globo em uma perspectiva externa, havia uma cepa desses naturalistas que se interessavam por uma explicação interna: eram os médicos, os anatomistas. 
E estavam atrás de uma resposta científica, puramente mecânica, para a pergunta “porque a pele preta é preta?”. Tentavam respondê-la por meio de dissecações e autopsias. Esses dois discursos, o etnográfico e o médico, dão origem a um terceiro, qual seja, o debate ético e político em torno do próspero comércio transatlântico de escravos. 

No centro do ambiente iluminista, a ciência pretendia dizer o que era certo e o que era errado na escravidão africana.
Sim, mas ainda que isso seja verdade, procurei me manter afastado da questão moral em si. Insisti na descrição de como o trabalho dos anatomistas levou a negritude de uma metáfora botânica (a variedade etnográfica dos diários de viagens) para uma metáfora zoológica (a investigação médico-anatômica do corpo negro). 

Em que está trabalhando agora?
Vou voltar à questão da raça. Imagine você que, em 1739, a Bordeaux’s Royal Academy of Sciences (Academia Real de Ciência de Bordeaux) publicou um edital convocando médicos e naturalistas em geral para um concurso surpreendente —por mais que concursos desse tipo fossem comuns no século 18. 
Os interessados deveriam, por meio de um ensaio médico-científico, responder ao seguinte desafio: “Qual é a causa física da negritude e do cabelo africano e qual é a causa de sua degeneração?”. Prometiam um prêmio de muito prestígio e valor, mas o fato é que nunca se soube se houve um vencedor. 
O que descobrimos foram os ensaios inscritos, em um total de 16, que permanecem inéditos para o grande público. Meu próximo livro, o qual estou escrevendo a quarto mãos com Henry Louis Gates Jr., um dos mais importantes e conhecidos professores afrodescendentes dos Estados Unidos, é a organização e a apresentação desses ensaios. 
Eles compõem uma formidável biografia da noção de raça. O professor Henry e eu estamos fascinados com o projeto e estamos trabalhando para levá-lo bem além dos muros acadêmicos. 
 


Hamilton dos Santos é jornalista e doutorando em filosofia na USP

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