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Guilherme Cezar Coelho

Renda e patrimônio devem ser o próximo foco da Reforma Tributária

Mudança em impostos sobre consumo é só início de esforço para promover crescimento sustentado da economia brasileira

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Guilherme Cezar Coelho

Cineasta, economista pela Universidade Stanford e fundador da Samambaia.org

[RESUMO] A recente aprovação de mudanças em impostos sobre consumo deve ser o abre-alas de uma reforma tributária mais ampla que reduza as isenções fiscais existentes no país, aproxime a alíquota definida em lei dos valores efetivamente pagos por empresas e corrija a isenção de lucros e dividendos de acionistas, mecanismo que amplia desigualdade sociais e torna o Brasil em verdadeiro paraíso fiscal para os super-ricos.

A Reforma Tributária dos impostos de consumo, aprovada na última quarta-feira (8) no Senado, é como o começo de um filme ou de uma série de TV que esperávamos há tempos para assistir. Há sempre um sentimento agridoce, de que podia ser melhor. Nesse caso, podia ser bem pior, na verdade. Poderia não ter acontecido. Estávamos empacados havia três décadas.

O filme brasileiro que queremos ver até o fim é crescimento econômico com qualidade, de maneira sustentada e redistribuindo renda. Esse tem sido o nosso grande desafio dos últimos 40 anos. (Nosso histórico aqui é tão ruim que estamos com o filme bem queimado conosco e com o mundo).

Plenário do Senado - Jefferson Rudy/Agência Senado

Agora, não há dúvida, demos um passo à frente. Ao transformarmos nossos impostos de consumo em impostos de valor agregado, estamos nos juntando às economias que deram mais certo e estamos fazendo justiça com quem paga esses impostos, pois o dinheiro ficará onde o bem ou serviço for consumido.

É verdade que setores específicos conseguiram exceções que, além de indevidas, foram excessivas. Isso resultará em uma carga tributária mais alta que a desejável. Infelizmente, teremos uma das maiores alíquotas de IVA (Imposto sobre Valor Agregado) do mundo. Uma boa notícia é que, por sugestão do TCU (Tribunal de Contas da União), foi aprovada no Senado —dentro do texto da Reforma Tributária do consumo— uma revisão de todas as exceções a cada cinco anos.

Pois a recente votação no Senado não foi o fim da Reforma Tributária. Deveria ser apenas seu abre-alas, seu primeiro ato. Para além da revisão das exceções nos impostos de consumo, precisamos urgentemente rever as isenções fiscais que já existem, que devem somar R$ 486 bilhões em 2024. Devemos sempre lembrar: qualquer isenção é paga pela sociedade brasileira, pois aqui se trata de um jogo de soma zero.

Com a discussão em torno do arcabouço fiscal voltando à tona, com declarações atrapalhadas de uns e legítimas preocupações de todos, o caminho mais certo e saudável para cortarmos gastos é cortar gastos tributários. Sem métrica e sem transparência, as isenções fiscais brasileiras precisam imediatamente passar por um pente-fino.

Segundo um estudo da Receita Federal de 2019, revelado por esta Folha neste ano, nossos gastos com isenções corresponderam então a 4,8% do PIB, quando o ideal teria sido 2%. Aqui, há uma nítida oportunidade para um ajuste fiscal. Gasto tributário é gasto público e, por isso, tema para a nova regra fiscal, que, por sua vez, é central à formação de expectativas no mercado financeiro.

Nesse estudo, a Receita recomendava que as revisões e reduções de isenções fiscais fossem feitas de maneira integrada à Reforma Tributária, e o jeito de garantir segurança jurídica e previsibilidade seria através de transições.

A Receita dá a dica de que ao menos R$ 50 bilhões das isenções poderiam ser reduzidos ano a ano, todos os anos. Uma excelente notícia. Esses R$ 50 bilhões são, por acaso e sorte, exatamente o montante que caminha para nos desequilibrar fiscalmente no ano que vem. A solução está dada, só nos falta estudar onde cortar nas isenções. Isso é para já.

Entre os gastos tributários em isenções fiscais, o maior deles é o regime especial do Simples Nacional: cerca de R$ 118 bilhões em 2024. Sua análise é incontornável. Apesar do nome, o Simples complica em muito o nosso já asfixiante cipoal tributário, contribuindo para o que se chama de "desigualdade horizontal" na tributação.

Para uma mesma renda, existe hoje no Brasil uma enorme variância entre as alíquotas aplicadas, dependendo de como se for receber. Carteira assinada, Simples, MEI (microempreendedor individual), distribuições de lucro presumido ou de lucro real. Cada regime tem regras e custos bem diferentes. Nada menos isonômico.

O Simples está no centro disso, causando enorme distorção. Criado para estimular o empreendedorismo, acabou se transformando em incentivo à pejotização de profissionais qualificados e para manobras fiscais de empresas que se dividem em várias, de forma a continuar dentro do limite de faturamento anual de R$ 4,8 milhões. Em vez de discutir o problema, o Congresso tem uma proposta para ampliar esse limite, o que significa onerar ainda mais a sociedade.

Não é o caso de se acabar com o Simples, mas de corrigir o modelo. Temos que separar o joio do trigo. Um Simples bem desenhado seria bom. O problema do desenho atual é que cria injustiças de início: o Simples era para ser para os pequenos e, nesse sentido, seria justo e ainda incentivaria a formalização. Porém, ele foi se deturpando e acabou dando benefícios injustificáveis aos grandões. O que menos precisamos agora é aumentá-lo.

O MEI, que tem 14 milhões de contribuintes faturando até R$ 6.750 por mês, é outro tema que merece reflexão e reforma. Já há até proposta que pretende ampliar seu limite de faturamento, passando de R$ 81 mil para R$ 144,9 mil por ano. Em parte atendendo à sempre necessária correção inflacionária quando se fala em tributos, essa mudança adia uma necessária revisão.

O MEI, como o Simples, gera ineficiência alocativa ao incentivar empreendedores a não ultrapassar o teto de faturamento, mantendo-se "micro" e, assim, reduzindo seu acesso à escala, tecnologia e, por consequência, limitando sua produtividade. O MEI ainda esconde uma verdadeira bomba-relógio para a Previdência, um problema ainda sem discussão.

Uma maneira de equacionar o Simples e o MEI, liberando empreendedores para crescer, seria reduzir os custos de folha salarial e impostos de renda, para todos os setores e não apenas para os que têm lobby forte. Assim, seria possível encontrar "o meio do caminho" entre essas perdas de receita e os impossíveis R$ 118 bilhões hoje gastos com o Simples Nacional anualmente, mitigando também o rombo do MEI na Previdência.

Temos ainda muito o que fazer. Esse filme está longe do fim e não há motivo para desanimar. Vida boa, próspera e bacana só acontece em lugares com governos efetivos, presentes e competentes. Para isso, ao discutirmos o Estado, o verbo "reformar" deve ser sempre conjugado no gerúndio.

Precisamos constantemente nos reformar, para aprimorar políticas, regulamentações e instituições públicas, com especial atenção para quem trabalha no serviço público, pois são as pessoas responsáveis por ele e que devem ser permeáveis às demandas da sociedade.

Estamos só no começo de uma série de reformas econômicas que, ao fim, pode constituir um movimento para trazer mais dinamismo à economia e melhores oportunidades para quem quer trabalhar, produzir e crescer profissionalmente. Nós nos devemos isso.

Governo e Congresso estão, neste momento, alterando a regulação sobre fundos de investimentos, indo atrás de fechar brechas, buscando promover isonomia, esta palavra de ouro, republicana. Além disso, o governo tem a obrigação de promover uma reforma dos impostos de patrimônio e de renda, das pessoas físicas e das empresas.

Aqui, o objetivo deve ser trazer mais competitividade para as empresas brasileiras e mais racionalidade para a tributação das pessoas físicas, estimulando investimentos produtivos e mais crescimento da economia.

Um poderoso instrumento para essa discussão acaba de ser lançado e foi tema de manchete desta Folha. Trata-se do estudo "Alíquotas efetivas e incidência do Imposto de Renda corporativo", elaborado pelo Observatório de Política Fiscal do FGV Ibre (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas) e pelo Made/USP (Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades da Universidade de São Paulo), com apoio da Samambaia.org, uma nova organização dedicada a apoiar estudos para maior crescimento econômico.

Os economistas Manoel Pires (FGV), Pedro Romero Marques (Made/USP) e José Bergamin (Made/USP), autores do estudo, apontam que a tributação efetiva do lucro das grandes empresas brasileiras de capital aberto é de 18,1%, quase metade da alíquota de 34% prevista na lei atual e bem abaixo da média global de 23,5%. Ou seja, o estudo mostra que a tributação nominal das pessoas jurídicas no Brasil, que é uma das mais elevadas do planeta, na hora da verdade, fica muito longe dessa posição.

Essa alta tributação nominal das pessoas jurídicas tem sido usada para justificar a isenção de Imposto de Renda na distribuição de lucros e dividendos para os acionistas das empresas. Isso acontece entre nós desde 1996, quando essa isenção foi criada para igualar nosso país às práticas então predominantes na maior parte das economias relevantes do mundo.

Porém, ao longo dos anos, no exterior os outros foram abandonando essa política e, hoje, o Brasil é uma das poucas exceções que ainda a mantém. No âmbito da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), por exemplo, só Colômbia, Estônia e Letônia têm alíquota zero, entre 37 nações integrantes. Entre os países que tributam, os Estados Unidos estão no meio da tabela, com alíquota de 45,4%; nos extremos estão a Irlanda, com 78,1%, e a Grécia, com 15%, segundo dados da organização, em 2021.

De acordo com o estudo de Pires, Marques e Bergamin, a diferença entre a alíquota nominal de 34% prevista para o IRPJ (Imposto de Renda Pessoa Jurídica) e o percentual efetivamente pago, 18,1%, ocorre porque as empresas têm acesso a benefícios fiscais, conseguem decisões judiciais que reduzem o pagamento de tributos e também realizam manobras de planejamento tributário.

Tudo isso exige que as empresas tenham gastos elevados com estruturas jurídico-contábeis, o que impacta seus custos totais, diminuindo sua capacidade de competir em um cenário globalizado. É o tal custo Brasil.

Além disso, a gestão dessa vida tributária caótica consome tempo precioso das administrações empresariais, que poderiam estar voltadas para o aperfeiçoamento de seus produtos e serviços. É a tal ineficiência alocativa.

Com base no estudo, podemos concluir que a Reforma Tributária sobre a renda deveria aproximar a alíquota nominal das pessoas jurídicas à alíquota efetiva, o que significaria colocar o Brasil em pé de igualdade no cenário internacional e, ao mesmo tempo, libertaria nossas empresas de parte considerável dos custos que hoje dificultam suas capacidades de competir com concorrentes estrangeiras.

Esses custos tenderiam a se transformar em investimentos nas próprias empresas, o que traria grande impulso a um crescimento econômico sustentado do país, aumentando a arrecadação e gerando mais empregos, o que, por fim, fortalece o mercado interno de consumo.

Por outro lado, esse novo quadro para o IRPJ —e apenas depois disso— criaria as condições para a volta da tributação dos lucros e dividendos dos acionistas, o que deve corrigir uma das mais flagrantes distorções do nosso sistema tributário.

Atualmente, cerca de 60% da renda dos mais ricos brasileiros vêm justamente dessa riqueza, que não é tributada nem na pessoa física que a recebe nem na pessoa jurídica de onde provém. Esse mecanismo torna o Brasil em um verdadeiro paraíso fiscal para uma minoria ínfima de sua população.

A pesquisa dos economistas foi realizada com dados dos balanços das 336 empresas que estiveram registradas na Bolsa de Valores no período de 2012 a 2022, o que inclui indústrias, varejistas e companhias do setor de serviços. Não foram incluídas empresas financeiras. A alíquota efetiva registrada no Brasil para essas empresas está abaixo do praticado nos EUA (21,2%), na Europa (25,7%) e países emergentes (26,4%).

Porém a alíquota efetivamente paga pelas empresas listadas na Bolsa, que na média ficou em 18,1%, varia conforme o setor em que atuam, indo de 14,29% a 21,6%. As que estão mais próximas desse topo são as indústrias de máquinas e equipamentos, as concessionárias de transporte e os setores de tecnologia. Já as que menos pagam são aquelas que estão no grupo do agronegócio, do varejo, da construção e de alimentos e bebidas.

O sistema brasileiro, repleto de distorções, benefícios fiscais e isenções, acaba por prejudicar o desempenho das próprias empresas que conseguem de alguma forma se beneficiar do caos, mas afeta principalmente todas as demais que não têm condições de manter os altos custos para operar nesse emaranhado, que exige a contínua ação de serviços jurídicos e contábeis. Também afasta do país grupos empresariais que não estão dispostos a enfrentar o cipoal tributário que asfixia negócios e inibe investimentos. Queimação de filme.

Por fim, a isenção de tributação para lucros e dividendos é a parte mais evidente de um mecanismo nacional que gera e amplia desigualdades sociais, o que também prejudica os super-ricos que se iludem ao gozar de seus benefícios.

Um sistema tributário racional, voltado para o crescimento do país e para o fortalecimento do mercado interno de consumo, poderia lhes dar a chance de ampliar os próprios negócios e de sentir em seu próprio país o maior prazer que desfrutam quando vão ao exterior. Caminhar em segurança pelas ruas e, ainda, fazer todo mundo pagar menos imposto de renda.

A Reforma Tributária —ou qualquer reforma— pode ser realizada em etapas, mas deve ser pensada e comunicada como um todo. Neste ano, começamos pelos impostos de consumo. Fomos bem sucedidos em uma muito aguardada e necessária simplificação e racionalização. Com isso, ficou evidente que isenções fiscais e brechas são ótimos desafios, agora tornados obrigatórios para o governo, para o TCU e para o Congresso. Nosso equilíbrio fiscal depende disso.

Devemos agora seguir em frente, atentos e fortes, com uma revisão dos gastos tributários, das brechas e dos nossos impostos sobre renda e patrimônio, redesenhando o sistema como um todo, para muito melhor.

Precisamos não repetir o que vimos na recente tramitação dos impostos de consumo no Senado, quando parte da discussão se deu fora dos cadernos de economia e das páginas de opinião. Quando isso acontece, interesses privados costumam deixar o interesse público do lado de fora. Esse filme a gente já viu e não funciona mais. O público agora quer mais.

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