Filão de livros que alardeiam 'fim do mundo' se volta contra tecnologia

Cenário político turbulento alavancou obras que questionam a sobrevivência da democracia

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[RESUMO] Cenário político turbulento alavancou um filão de livros que questionam a sobrevivência da democracia tal como a conhecemos. Autor aponta nova fase nessa tendência, em que a instabilidade é associada ao poder das gigantes da tecnologia.

Os acontecimentos políticos dos últimos tempos provocaram uma onda de livros —sérios, mais do que best-sellers de ocasião— nos quais cientistas e filósofos políticos, historiadores e até jornalistas questionam a capacidade de sobrevivência da democracia como a conhecemos.

Dois deles, de títulos parecidos, ganharam mais destaque no Brasil: “Como a Democracia Chega ao Fim” (Todavia, 2018), de David Runciman, e “Como as Democracias Morrem” (Zahar, 2018), de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt. Mais recentemente, chegou também aos leitores brasileiros o excelente “O Povo contra a Democracia” (Companhia das Letras, 2019), de Yascha Mounk. 

A diferenciação que faz o pesquisador de Harvard entre duas variantes do Estado legitimado pelo voto popular no século 21 —de um lado o “liberalismo antidemocrático”, de outro a “democracia iliberal” —tem potencial para se tornar nova taxonomia corrente na ciência política. 

 

E a lista de lançamentos na mesma toada, sobretudo publicados em inglês, oferece outros títulos chamativos: “Can It Happen Here?” (“pode acontecer aqui?”, e a pergunta não é retórica: “aqui” é lá nos Estados Unidos, onde Trump tenta a todo custo minar as bases institucionais da democracia); “Why Liberalism Failed” (“por que o liberalismo fracassou”, no qual se pressupõe, como também faz Yascha Mounk, que o ideal liberal deveria ser indissociável do ideal democrático); e finalmente, para não ser exaustivo, “It’s Even Worse Than You Think” (“é ainda pior do que você pensa”, autoexplicativo). 

As livrarias —ainda que sejam poucas as sobreviventes no Brasil, outro sinal dos nossos tempos— não fariam mal em inaugurar uma seção especial para essa verdadeira “bibliografia do fim do mundo”. No ano passado, o editor-chefe da revista The New Yorker, David Remnick, sugeriu que se batizasse o conjunto dessas obras de “biblioteca da ansiedade”. 

Parece já ter vindo à tona, porém, uma segunda geração de títulos que, mais do que os anteriores, associam o terremoto político generalizado ao atual estágio do capitalismo —o que ganhou reforço, há poucas semanas, com o anúncio do Facebook de que passará a operar com uma moeda própria, a libra. 

É a primeira vez na história que um ente privado assume, em grande escala e sem constrangimento aparente, uma das funções definidoras do Estado-nação, pilar das relações políticas na modernidade. Quase 2,5 bilhões de pessoas fazendo parte de uma comunidade baseada, entre outras coisas, no uso de uma mesma moeda é algo nunca visto —e de fato assustador.

Por sua vez, a nova vertente de análise dessa etapa do capitalismo rejeita que a disseminação de modos de sociabilidade via dispositivos portáteis conectados em tempo integral, fato incontornável, seja tomada como evolução natural das coisas, plenamente assimilada num conceito como o de “pós-humanismo”. Não, dizem esses autores: será preciso reaver o humano, resgatá-lo da nuvem, por assim dizer, para que a experiência cotidiana, política inclusive, volte a fazer sentido.

Nomes como Jenny Odell, Tim Wu e James Williams, entre outros, se dedicam à crítica do que se convencionou chamar “economia da atenção”. Williams, por exemplo, deduz com grande clareza as consequências políticas do fato de que, no capitalismo das mídias sociais, nossa atenção é o principal ativo disputado por gigantes globais como Google e Facebook.

Para o autor, o hábito das redes, comparável ao vício das máquinas caça-níqueis, afeta o próprio livre-arbítrio de seus participantes —cada um deles também um eleitor, vale lembrar. Com o eleitorado habituado a abrir mão, cotidianamente, de uma liberdade de escolha tão básica quanto a de se desplugar da balbúrdia virtual, eleições já não expressariam propriamente a “vontade do povo”.

Argumentos assim, além de inúmeras variações sobre o tema, são desenvolvidos em profundidade em “The Age of Surveillance Capitalism”, da pesquisadora americana Shoshana Zuboff, volume que lhe consumiu sete anos de trabalho e lança oficialmente, enfim, a expressão-título criada pela autora, “capitalismo de vigilância” —há anos pipocando aqui e ali nas discussões sobre o poder das novas gigantes da tecnologia

“É o sonho digital se tornando sombrio, sua rápida mutação à forma de um projeto comercial voraz e totalmente singular a que chamo capitalismo de vigilância”, argumenta Zuboff. Para a pesquisadora, aí se estabeleceria “um novo tipo de mercado de previsões comportamentais, um mercado futuro dos comportamentos. Os capitalistas da vigilância se tornaram imensamente prósperos com essas operações comerciais, uma vez que muitas empresas estão ávidas por fazer apostas sobre nosso comportamento futuro”. 

Zuboff identifica um novo tipo de poder nas mãos desses capitalistas, que não apenas estariam acumulando informações, mas de fato moldando o comportamento humano para servir aos objetivos de terceiros.

“Assim como a civilização industrial prosperou às custas da natureza e agora ameaça nos cobrar em troca a própria Terra”, compara a autora, numa analogia extrema, “uma civilização da informação moldada pelo capitalismo de vigilância e seu novo poder instrumentalizador prosperará às custas da natureza humana e cobrará em troca nossa própria humanidade.” 

O jornalista e ativista britânico Paul Mason parece ter pegado a deixa para propor, em seu “Clear Bright Future”, lançado também recentemente, “uma defesa radical do ser humano” e o retorno a “uma forma diferente de humanismo” —tudo empacotado no que, ambicioso, anuncia como “uma teoria da natureza humana capaz de fazer frente às teorias do século 21 sobre cognição e inteligência artificial”.

Mason é um dos críticos mais ferozes do chamado “pós-humanismo”: “A ideia de que ‘a humanidade já era’ está profundamente enraizada no pensamento moderno, da direita alternativa à esquerda acadêmica”, escreve ele, mirando alvos tão variados quanto Trump e Bolsonaro (o presidente brasileiro recebe suas chicotadas já na introdução do livro) ou Yuval Noah Harari, o guru israelense da futurologia. 

Em sintonia com Williams e Zuboff, o britânico aponta o dedo para essas várias correntes ideológicas que, em sua visão, teriam se conformado com mais de 30 anos de um capitalismo de mercado destinado a anular qualquer expressão de individualidade para além do consumo —e, portanto, abdicado de defender valores iluministas fundamentais, como a verdade ou a universalidade do humano.

“Enquanto isso, a tecnologia passou a minar nossa habilidade de agir autonomamente, livres de controle e vigilância digitais”, analisa. O autor lamenta que “teorias abertamente anti-humanistas têm hoje mais força do que jamais tiveram nos últimos 200 anos”, e declara sua crença no “futuro brilhante e luminoso” do título de seu livro, alusão à célebre frase do revolucionário russo Leon Trótski.

Em seu livro anterior, “Pós-Capitalismo” (Companhia das Letras, 2017), Mason já expressara suas preferências e esperanças de futuro: “Com a tecnologia informática, grande parte do projeto utópico socialista torna-se possível: de cooperativas a comunas e ao afloramento de comportamentos emancipados que redefinem a liberdade humana”. 

Agora mais incisivo, passa a defender certo “socialismo utópico automatizado” —uma espécie de comunismo perfeito auxiliado por máquinas, subsequente à atual fase “stalinista” em que o desperdício de recursos naturais, como foi o de vidas sob o stalinismo histórico, ainda não permitiria comemorar uma supereficiente sociedade sem classes. 

Nessa deriva, o autor faz o leitor se perguntar se, levada às últimas consequências, sua teoria supostamente otimista não caberia melhor naquela potencial estante da ansiedade nas livrarias... 

Ou talvez o mesmo leitor ganhasse mais dedicando algumas horas à impressionante distopia imaginada por Luiza Sauma, ficcionista brasileira radicada na Inglaterra desde a infância, em seu mais recente romance, "Everything You Ever Wanted" (“tudo que você sempre quis”). 

Num futuro próximo, plenamente reconhecível pelo que já vivemos hoje, uma jovem —entre cujos traumas figura a proverbial exposição pública e devastadora, por um namorado adolescente, da intimidade sexual dos dois— decide abandonar a rotina deprimente de trabalho num escritório tipo startup e fazer parte de um experimento em outra dimensão, Nyx. 

Nesse paraíso que promete igualdade, autossuficiência e fama a seus habitantes —todos espiados permanentemente da Terra, para onde, pelo contrato que assinaram, jamais voltarão—, o fim do mundo emerge assustadoramente mais palpável do que na melhor teoria social recente. 


Christian Schwartz, doutor em história social (USP/Cambridge), é jornalista e tradutor.

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