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Inteligência artificial na linguagem pode abolir interação humana

Tradução automatizada indica afastamento total de padrões antropocêntricos

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Para o leitor entusiasta das novidades tradutórias, é provável que a chamada de capa de algumas semanas atrás, nesta Folha, anunciando os resultados de um estudo realizado por pesquisadores da Universidade da Califórnia, tenha causado algum frisson: “Implante cerebral melhora tradução de pensamento em fala”, dizia o texto. 

A reportagem explicava que, tendo arregimentado cinco voluntários que passariam por uma neurocirurgia, os autores do estudo aproveitaram o procedimento para introduzir eletrodos entre o osso do crânio e o cérebro dos pacientes. 

Com o equipamento instalado dentro da cabeça, as cobaias foram instruídas a falar centenas de frases. “Enquanto isso”, prosseguia o texto, “um monitor ligado aos eletrodos fazia uma espécie de mapa da atividade elétrica no cérebro, mostrando quais áreas repercutiam enquanto os pacientes falavam”. 

O que a mim, particularmente, mais surpreendeu foi a ambição anunciada para a sequência do estudo. “Queremos criar uma tecnologia para que pessoas possam se comunicar de forma mais natural”, declarou Edward Chang, um dos neurocientistas. “O estudo foi feito a partir de palavras que foram ditas. Ainda não sabemos se é possível decodificar pensamentos isolados.” 

“Pensamentos isolados”? Fiquei eu, cá com meus botões de modesto tradutor literário, a tentar decodificar o que acabara de ler —pondo em prática o procedimento mesmo que, para aqueles pesquisadores, define uma tradução, ou ao menos era isso que davam a entender as notícias sobre o inédito estudo (“implante cerebral traduz pensamentos”). E de imediato me veio à mente Paulo Rónai

Num artigo de jornal dos anos 1970, ao especular sobre que futuro teriam os tradutores, Rónai se espantava com o teste público de uma tal “701” (número que servia de nome à máquina), realizado no Instituto de Linguística da Universidade Georgetown, também nos EUA. O computador já rodava um sistema de equivalência entre palavras avulsas, complementado por programação extra que o instruía sobre regras linguísticas e gramaticais. 

“O objetivo principal da pesquisa consistiria atualmente em sistematizar o maior número possível de tais regras gerais, que envolvem as divergências estruturais dos idiomas”, esclarecia Rónai, admirado da capacidade dos engenheiros eletrônicos da IBM, “peritos em máquinas de calcular das mais complicadas e entendidos em engenhosos sistemas de classificação por meio de cartões perfurados”.

Conforme tentei mostrar em artigo neste espaço, no ano passado, a tradução automatizada tateou no escuro até o momento em que as máquinas deixaram de lidar com “divergências estruturais dos idiomas” para funcionar a partir de textos anteriormente traduzidos por humanos, acessíveis em imensos repositórios online como os arquivos multilíngues da ONU ou da BBC. 

Ora, a linguagem humana, sobretudo a fala, transcende o nível lexical, as “palavras que foram ditas”, na expressão do autor do estudo sobre tradução de pensamentos: ela é sempre “texto” —uma interação verbal com fim específico e imediato, impossível de prever antes da ocorrência linguística propriamente dita, ou seja, fora de seu contexto. Nesses termos não haveria, portanto, algo como um “pensamento isolado”. 

É curioso ver que a neurociência recorre a concepções filosóficas que outrora também guiaram as teorias da tradução automatizada, conforme descreve o professor e tradutor David Bellos em seu livro “Is That a Fish in Your Ear?” (é um peixe na sua orelha?), excelente apanhado sobre as noções de tradução ao longo dos séculos.

“Se a língua é um código [...], o que estaria codificado nela?”, pergunta-se o autor, tentando reconstituir o raciocínio dos primeiros desenvolvedores de máquinas tradutoras. “Só há uma resposta possível na longa tradição ocidental de estudo das línguas desde os gregos [...]: o significado (às vezes chamado de ‘pensamento’)”.

Mas, como bem observou meu colega Bruno Gambarotto, também aqui na Ilustríssima: “A tradução [...], como processo, integra a pluralidade social do pensamento” —a ênfase aqui é em social— “e o princípio do contraditório sob o qual as sociedades democráticas se organizam”. 

Essa noção, absolutamente correta, contrasta com o que escreveu um internauta na seção de comentários da matéria da Folha sobre o experimento da Califórnia: aquele, comemorava o entusiasmado leitor, seria só o primeiro passo na descoberta de “um método de comunicação inter-humana sem ligação com a linguagem”! 

Ainda que inadvertidamente, o comentário toca no que talvez devesse ser nosso mais justificado temor em relação à inteligência artificial aplicada à linguagem: que ela, em vez de imitar, se afaste completamente de padrões antropocêntricos. 

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O escritor britânico Ian McEwan durante palestra no Fronteiras do Pensamento, em 2016 - Adriano Vizoni/Folhapress

“A ideia de que mentes computacionais deveriam se assemelhar a mentes humanas começa a parecer tão fatalmente arrogante quanto [antes de Galileu] foi a astronomia geocêntrica”, sugeriu o crítico Julian Lucas, da revista The New Yorker, ao resenhar o mais recente romance de Ian McEwan, “Máquinas Como Eu” (Companhia das Letras). 

McEwan projeta um mundo no qual, prescindindo da interação social que nos torna seres de linguagem e afeto, as máquinas nos imponham, enfim, uma “língua dos pensamentos isolados”: extinto o romance (nos dois sentidos da palavra), de nada nos servirá tentar traduzi-la.


Christian Schwartz, doutor em história social (USP/Cambridge), é jornalista e tradutor.

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